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Mostrando postagens de junho, 2025

Profundamente, poema de Manuel Bandeira

Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Estrondos de bombas luzes de Bengala Vozes cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas. No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam E riam Ao pé das fogueiras acesas? Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente II Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? - Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. Em: Estrela da Vida Inteira págs.111-112 Imagem: Festa Junina, Djanira

Passarinho, poema de Marcelo Valença

Quero te falar do tempo das coisas Dos símbolos que as dão os anos Dos vazios que escancaram as ausências E dos signos que as virão preencher Quero te falar do tempo das pessoas Do valor que lhes confere o amor Dos espaços que resultam das escolhas E dos versos que iremos escrever Quero te falar do tempo das dores Do peso que lhes desaba a solidão Do tempo que é mãe das curas E dos caminhos a percorrer Quero te falar do tempo futuro Dos sonhos que lhe dão sentido Da grandeza que acompanha a lição E da semente que vemos crescer Quero te falar do tempo do agora Do amor que aqui te é perene Do regogizo leve ante tua presença E do teu riso, meu prazer

Canção da Saudade, poema de Almada Negreiros

Se eu fosse cego amava toda a gente. Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha edade. Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste. Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos. Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas. Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas. Eu amo os cemiterios - as lágens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres bellas rindo-se para mim. Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi. Se eu fosse cego amava toda a gente. Almada Negreiro...

Dois Poemas de Josemári Recaldi (Peru)

Como Uma Menina Como uma menina que comtempla desde a janela do ônibus a avenida passar em sua ardente felicidade feita de amar sem nenhuma urgência eu gostaria chamar eu gostaria poder me decidir a comunicar esta estratégia de sobreviver por amor das avenidas e do mar. No Crepúsculo Pisado Descanso No crepúsculo pisado descanso, eu lírio de fome até as aréolas, Atrás de mim diga tudo o que quiser, não corro, atrás de mim eu guardo esse mesmo, murmúrio mutável de pombas. Eu para você não quero nada querer Eu em você destruo todos seus eus. Fonte: Revista Acrobata

O Quarto Anjo, conto de José Eduardo Agualusa

     Após criar o primeiro anjo, Deus ofereceu-lhe um poderoso par de asas. Explicou-lhe que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo. – Os pássaros – assegurou-lhe – voam por convicção. O anjo viu como voavam os pássaros, batendo as asas e recolhendo as pernas, e imitou-os.   Ao fim de cinco meses tinha ganho uma certa prática e até já conseguia fazer algumas piruetas, incluindo voo picado seguido de um duplo mortal invertido. Não era ainda uma águia, mas também não poderia ser confundido com uma galinha. Enfim, voava. – Agora tira-as. – Disse-lhe então Deus, que o observara, em silêncio, a uma distância discreta, durante todos aqueles dias. – Tira as asas e voa. O anjo olhou para Ele incrédulo. Protestou: – E eu lá sou doido, ó Deus?! Tiro porra nenhuma! Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem que o anjo falasse português, nem sequer o forte sotaque carioca. A língua e o sotaque, aprendera-as com Ele. Compreendeu, todavia, que lhe faltava ...

Com Licenca Poética, poema de Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos — dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. Em: Bagagem Imagem: tela de Françoise Gilot A poeta mineira faz referência ao Poema das Sete Faces do também mineiro Carlos Drummond de Andrade: "Quando eu nasci, um anjo torto desses que vivem na sombre Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida..."