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Mostrando postagens de 2025

Figuras do Vento, poema de Joaquim Cardozo

                                                                                                       "Figure porte adsence et présence..." Pascal Figuras do vento Nos ares divinos São finos cabelos Na luz. Movimento De puras miragens, imagens, modelos De formas vazias; São asas difusas, São vôos imensos, Perdidos no espaço Por noites e dias. São ventos profanos Rompendo,mugindo, Lavrando no mar; Sào ventos lavrando, São bois de charrua, São gênios que ceifam Searas na lua E animam sementes Que irão germinar. São ventos feridos, São ventos antigos, Saudade de amigos, Lembranças, rumores; São ventos irados De pele gelada Batendo em meu rosto, Marchando em rajada, Rufando tambores. São ventos, são vozes, São queixas veladas Nos vale...

Circo de Coelhinhos, conto de Marques Rebelo

     Isabel, Beatriz dos olhos cor de mel, e Loló e Silvino, na farândola infantil dos meu amores,dançaram com Dodô e dois coelhos.      Sim, dois coelhos. Chegaram numa cesta de tampa em certo domingo morno de novembro, quando na casa de tia Bizuca, onde eu morava e que era o Andaraí, apontavam os ramos do pomar os primeiros sapotis inchados.      São de raça - disse seu Manuel, chacareiro, valorizando o presente que me trazia - Angorás legítimos - mostrava, suspendendo-os pelas orelhas, que ao meu protesto por tamanha barbaridade foi explicado ser o processo usual e correto de se pegar coelhos.      Angorás, ou não, jamais houve coelhos tão queridos, lindos que eu os achava, brancos, peludos, olhos vermelhos, orelhas róseas - dois amores.      Minha vida até aí era um suceder de brinquedos e mais brinquedos, pique, cabra-cega, traquinadas na chácara que subia até o morro, barulhentas correrias nas salas vazias ...

Maneco, poema de Marcelo Valença

Sempre que chove Manequinho floreia Verde branco e lilás Manequinho incendeia Como ninguém é capaz Sempre que chove Por toda parte Manequinho clareia Vívido e audaz Manequinho sereia Como ninguém é capaz Por toda parte Sem nenhum alarde Manequinho alheia Lívido e em paz Manequinho permeia Como ninguém é capaz Sem nenhum alarde

Vamos Pensar?

 

O Presente, conto de Natascha Duarte

 ( Para meu pai) Eu nunca soube porque ele não entrou na casa para dar a bicicleta à menina. Ela tinha 8 anos e era Natal, um natal de fim de tarde encandescente e, entre eles, havia uma porta de correr de vidro. Fechada. O quadriculado do vido criava a impressão de rostos disformes e foi assim que a menina o viu quando ele chegou, ele que nem parecia ele.  Ela também deve ter surgido outra, através da ilusão que a porta provocava, como se não fosse sua filhinha adorada. No entanto, ao abrir o que os separava, a falsa impressão se dissipou,e os dois, pai e filha, encontraram-se no meio, nem pra fora, nem pra dentro. Simplesmente, em cima do trilho que corria no chão. Ali olharam-se  e se abraçaram mais do que podia ser.      A presença um do outro fortalecia os dois e fez a menina sentir na pele sensações diferentes que ela coloriu do jeito certo. A ansiedade pareceu branca e arrepiou a nuca. A felicidade amarela deu coceiras, de tanto ela se movimentar. A ...

Pelas Ruas de Tirano, crônica de José Paulo Cavalcanti

  Tirano fica bem ao norte de Itália. Na Lombardia, já fronteira com a Suiça. É famosa por muralhas construídas, no final do século XV, por Ludovico Sforza - O Mouro; pelo Santuário della Madonna, dos inícios do século XVI; e por suas três grandes portas - Bormina, Milanese e Poschiavina.      Marmirolli fazia parte daquela paisagem de cartão-postal.Órfão dos pais, desde cedo foi criado por uma velha tia. Com todos os cuidados e carinhos próprios dos filhos únicos. Até quando foi estudar em Milão. Já engenheiro, e com o advento da Segunda Guerra, voltou à terra. Não em busca de emprego, como seria natural; mas para ser partigiano - contra o Eixo de Hitler e Mussolini. Tendo plena consciência dos riscos que corria. E não foi surpresa para ninguém quando seu grupo acabou nas mãos de tropas alemães. Ao meio-dia de um dia quente, ainda mai quente que os dias quentes daquela época do ano. Quente como ferragosto.       Aqueles quase meninos foram então...

História Bonita: A Escola da Árvore

  Francisco tinha três anos quando a mãe, a então servidora pública Letícia Araújo, 49, o levou a um posto de saúde no Varjão, na região norte de Brasília. Ao avistar uma criança da mesma idade, o menino fez um questionamento que estaria prestes a mudar a vida da família. "Ele olhou para a nossa cara e disse: 'Ele (o menino) é preto?' Meu filho não sabia o que era uma pessoa preta", relembrou a mãe. Foi a partir dessa indignação que ela e o marido, Davi Contente, 40, em 2015, decidiram usar uma casa de 46 metros na chácara em que moravam, para dar início à história da Escola da Árvore. "Aqui era a minha churrasqueira", apontou Araújo, fundadora e pedagoga da instituição, ao apresentar o cômodo reformado, que abriga a turma mais nova da escola: Mirindiba. "Eu só comecei a pensar nessa escola quando não achava nenhuma no Plano Piloto que tinha crianças negras. Como que meu filho vai aprender a lidar com o racismo, se ele só tinha coleguinhas brancos?...

O Jeito Que Meu Pai Fala, crônica de Marcílio Godoi

  Salve 4 de outubro, dia do seu Marciano! Lá em casa, quando fazíamos aniversário, meu pai sempre chegava, a um determinada hora do dia, geralmente trazido à força por minha mãe, e perguntava: — Aêooou, Marcs..., (parênteses: meu pai Marciano chamava todos os filhos de Marcs..., que era um genérico de si mesmo que ele aplicava a toda a prole, Marciano, Márcio, Marcelo, Marcus, Marcial, Marcílio...) ouvi dizer que é o seu aniversário hoje? — É, sim, pai. — Então meus parachoques! — ele brincava, de longe, sempre com medo de que um abraço e um beijo — perigo! — formalizassem um parabéns muito afetuoso. Seu Marciano era amoroso, mas não podia deixar isso expresso de forma nenhuma, sob pena de perder o moral. Os filhos, os que sabiam ler a gente no gesto, sabiam disso. E era fácil saber, afinal o ET sempre esteve lá, junto de nós. Não faltava uma vez. Quando atendia o telefone, dizia, meio gritado, para a pessoa do outro lado ouvir quase sem a necessidade ...

A Professora Encantadora, Márcio Vassalo

  Maísa era uma professora que olhava para tudo com olho de assombro e estranheza. Ela dizia que assombro é um susto cheio de beleza e que estranheza é o casamento do estranho com a surpresa. As aulas da Maísa eram mesmo assombrosas, estranhas e surpreendentes. Na escola, ela se derretia de amor pelas palavras, pelas frases, pelos livros. Mas a Maísa se derretia pelas pessoas ainda mais que pelos livros. Então, a professora contagiava a gente com todo aquele derretimento. E dava aula de esticar suspiro. De olhos fechados, nós aprendíamos a suspirar fundo. E a Maísa suspirava junto com a gente, com aquele seu riso, às vezes freado, às vezes desembestado. Ah, e para ninguém atrapalhar a aula com urgências sem importância, no lado de fora da porta a professora pendurava um aviso: NÃO ENTRE AGORA. ESTAMOS SUSPIRANDO… No começo, os alunos que não conheciam bem a Maísa achavam que um dia ela daria uma prova para ver quem tinha aprendido a suspirar certo.Mas a professora logo explicava qu...

Canto Eucarístico, poema de Adélia Prado

Na fila da comunhão percebo à minha frente uma velha, a mulher que há muitos anos crucificou minha vida, por causa de quem meu marido se ajoelhou em soluços diante de mim: "juro pelo magnificat que ela me tentou até eu cair, peço perdão, por alma de meu pai morto, pelo Santíssimo Sacramento, foi só aquela vez, aquela vez só." Coisas atrozes aconteceram. Até tia Cianinha, que morava longe, deu de aparecer na volta do dia. Conversávamos a portas fechadas, ela com um ar no rosto que eu não vira, zangando pouco com o menino, deixando ele reinar. Houve punhos fechados,obeservações científicas sobre a rapidez com que a brilhantina desaparecia do vidro, sobre como pode um homem, num só dia, trocar duas camisas limpas. Irritação, impertinência, uma juventude amaldiçoada tomando conta de tudo, uma alegria - chamei assim à falta de outro nome - invadindo nossa casa com a sofreguidão das coisas do diabo. rezei de modo terrível. O perdão tinha espasmos de cobra malferida e não queria pe...

O Pequeno Engraxate, crônica de Cícero Belmar

     Era um barzinho com cadeiras na calçada, pessoal animado, e o menin o chegou com a caixa de madeira no ombro, vai uma graxinha? Um quis, estendeu a perna e colocou o pé sobre a tampa. O garoto limpou o sapato com um pano umedecido, retirou a sujeira, aplicou a graxa nas partes de couro com muito cuidado para não tocar na borda do solado. Com uma flanela limpa, lustrou vigorosamente até ficar brilhoso. Bateu na caixa, era o comando para trocar de perna. Enquanto o garoto repetia todo o serviço, o pessoal da mesa repetia copos de chope e um dos rapazes que xavecava a moça de cabelos cheirosos, a quem queria demonstrar conteudo de justiça social, fez um discurso com ares de indignação, que país é esse com criança trabalhando? A moça quis demonstrar consciência sociológica e comentou ele é uma das pessoas que estão na base da pirâmide, são os esquecidos sociais. O menino não sabia  muito bem o que aquilo queria dizer, mas, como a moça bonita olhou tão piedosa, enten...

Nobel de Literatura de 2025: Lásló Krasznahorkai ( Hungria)

 E o Nobel de Literatura de 2025 vai para... Lásló Krasznahorkai da Hungria. O autor só tem uma obra publicada no Brasil: Sátántangó ( Cia das Letras 2022) Publicado na Hungria em 1985,  Sátántangó  é um romance monstruoso. A ação se concentra na chegada de um homem misterioso, que pode ser um profeta, um vigarista, ou o próprio demônio, a uma aldeia húngara onde a chuva não para de cair. Os habitantes do lugar, um elenco de desajustados e enlouquecidos (camponeses esfarrapados; um médico alcoólatra observando obsessivamente seus vizinhos; jovens perdidas num moinho destroçado; uma garota com deficiência tentando matar seu gato) descobrem em determinado momento que Irimiás, um homem a quem atribuem poderes extraordinários, e dado como morto, está a caminho do lugar, com seu companheiro, Petrina. Para esperá-los, reúnem-se numa taverna, espécie de porão do fim do mundo, onde discutem, bebem e dançam grotescamente ao som de um acordeão. De braço dado com Kafka, Beckett e W...

Uma Ponte Para Machado de Assis, Ruy Castro para a Folha de São Paulo

  O nome, para todos os efeitos, é Ponte Rio-Niterói. É por ela que passamos volta e meia ou todos os dias, para as indescritíveis belezas ou inexplicáveis tristezas do estado do Rio. Mas o nome oficial, impresso nos documentos, placas e sinais, e pelo qual responde no universo paralelo da burocracia, é Ponte Presidente Costa e Silva. O povo, com ou sem memória ou consciência política, encarregou-se de raspar a homenagem ao general da   ditadura militar   em cujo quartel, com trocadilho, ela foi concebida. Nesses 51 anos de sua existência, desde 1974, nunca ouvi alguém dizer: "Você vai pela Ponte Presidente Costa e Silva, vira à direita na saída e pega a estrada para...". A ponte não foi sequer uma  ideia d a ditadura . Já era sonhada desde meados do século 19, quando a tecnologia para construí-la —um longo traço de união sobre a baía de  Guanabara — não existia. Mas, no dia 7 de junho de 1896, em sua coluna na Gazeta de Notícias, um escritor suspirou por ela: "...

A Espingarda de Alexandre, conto de Graciliano Ramos

     – Os senhores querem saber como se deu esse caso do veado, uma história que apontei outro dia? perguntou Alexandre às visitas, um domingo, no copiar. Ora muito bem. Olhem aquele monte ali na frente. É longe, não é?      – Muito longe, respondeu o cego preto Firmino.      – Como é que o senhor sabe, seu Firmino? grunhiu o narrador. O senhor não vê.      – Não sei não, seu Alexandre, voltou o negro. Eu disse que era longe porque o senhor é o dono da casa e deve saber. O senhor achou que era longe e eu concordei. Não está certo?      – Está, resmungou Alexandre. Mas eu quero a opinião dos outros. Que distância vai daqui àquele monte, seu Libório?      Seu Libório arriscou meia légua. Mestre Gaudêncio afastou o monte para duas léguas. E Das Dores afirmou que ele devia estar a umas cinquenta:      – É o que eu digo, meu padrinho. Cinquenta léguas, daí para cima. Alexandre, moderadam...