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Lua Crescente Em Amsterdã, conto de Lygia Fagundes Telles

     O jovem casal parou diante do jardim e ali ficou, sem palavra ou gesto, apenas olhando. A noite cálida, sem vento. Uma menina loura surgiu na alameda de areia branco-azulada e veio correndo. Ficou a uma certa distância dos forasteiros, observando-os com curiosidade enquanto comia a fatia de bolo que tirou do bolso do avental.
     – Vai me dar um pedaço deste bolo? — pediu a jovem estendendo a mão. — Me dá um pedaço, hem, menininha?
     – Ela não entende — ele disse. A jovem levou a mão até a boca.
     – Comer, comer! Estou com fome — insistiu na mímica que se acelerou, exasperada. — Quero comer!
     – Aqui é a Holanda, querida. Ninguém entende.
     A menina foi se afastando de costas. E desatou a correr pelo mesmo caminho por onde viera. Ele adiantou-se para chamar a menina e notou então que a estreita alameda se bifurcava em dois longos braços curvos que deviam se dar as mãos lá no fim, abarcando o pequeno jardim redondo.
     – Um abraço tão apertado — ele disse. — Acho que este é o jardim do amor. Tinha lá em casa uma estatueta com um anjo nu fervendo de desejo, apesar do mármore, todo inclinado para a amada seminua, chegava a enlaçá-la. Mas as bocas a um milímetro do beijo, um pouco mais que ele abaixasse… A aflição que me davam aquelas bocas entreabertas, sem poder se juntar. Sem poder se juntar.
     – Mas que língua falam em Amsterdã?
     – A língua de Amsterdã — ele disse enfiando os dedos nos bolsos da jaqueta à procura de cigarros.     — Teríamos que morrer e renascer aqui para entender o que falam.
     – Queria tanto aquele bolo, não sente o cheiro? Queria aquele bolo, uma migalha que fosse e ficaria mastigando, mastigando e o bolo ia se espalhar em mim, na mão, no cabelo, não sente o cheiro?
     Ele limpou nas calças os dedos sujos da poeira de fumo que encontrou nos bolsos.
     – Vamos dormir aqui. Mas vê se para de chorar, quer que venha o guarda?
     – Quero chorar.
     – Então, chora.
     Molemente ela se recostou numa árvore. Enlaçou-a. Os cabelos lhe caíam em abandono pela cara, mas através dos cabelos e da folhagem podia ver o céu.
     – Que lua magrinha. É lua minguante?
     Ele avançou até o meio da alameda e expôs a cara que se banhou na luz do céu estrelado.
     – Acho que é crescente, tem o formato de um C. Vem querida, ali tem um banco.
     – Não me chame mais de querida.
     – Está bem, não chamo.
     – Não somos mais queridos, não somos mais nada.
     – Está certo. Agora, vem.
     – O banco é frio, quero minha cama, quero minha cama — ela soluçou e os soluços fracamente se perderam num gemido. —
     Que fome. Que fome.
     – Amanhã a gente…
     – Quero hoje! — ela ordenou endireitando o corpo. Voltou para ele a face endurecida. — Se você me amasse mesmo, faria agora um ensopado com seu fígado, com seu coração. Meus cachorros gostavam de coração de boi, eram enormes. Não vai me fazer um ensopado com seu coração, não vai?
     – Meu coração é de isopor e isopor não dá nenhum ensopado. Li uma vez que — ele acrescentou. Puxou-a com brandura: —
Vem, Ana. Ali tem um banco.
     – Meu coração é de verdade. Ele riu.
     – O seu? Isopor ou acrílico, na história que li o homem achou que tinha tanto sofrimento em redor, mas tanto, que não aguentou e substituiu seu coração por um de acrílico, acho que era acrílico.
     – E daí?
     Ele ficou olhando para os pés enegrecidos da jovem forçando as tiras das sandálias rotas. Subiu o olhar até o jeans esfiapado, pesado de poeira.
     – Daí, nada. Não deu certo, ele teria que nascer outra coisa.
     – Você sabia contar histórias melhores.
     Sob a camiseta de algodão transparente, os pequeninos bicos dos seios pareciam friorentos. E não estava frio. Foram escurecendo durante a viagem, ele pensou. Qual era a Ana verdadeira, esta ou a outra? A que jurou amá-lo na terra, no mar, no braseiro, na neve, debaixo da ponte, na cama de ouro.
     – Você mentiu, Ana.
     – Quando? Quando foi que menti? Ele desviou o olhar desinteressado.
     – Vem, que amanhã a gente vai ver o museu de Rembrandt, lembra? Você disse que era o que mais queria ver no mundo.
     – Tenho ódio de Rembrandt.
     – Não esfregue assim a cara, Ana. Você vai se machucar.
     – Quero me machucar.
     – Então, se machuque. Mas vem!
     – Minhas unhas eram limpas. E agora esta crosta — gemeu ela examinando os dedos em garra. Limpou a gota de sangue que lhe escorreu do arranhão aberto no queixo. — Confessa que quer seguir sozinho a viagem, que quer se ver livre de mim!
     Nem isso. Não queria nada, apenas comer. E mesmo assim, sem aquele antigo empenho do começo. Gostaria também de sair dançando, a música leve, ele leve e dançando por entre as árvores até se desintegrar numa pirueta.
     – Você disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse comigo em Amsterdã, lembra?
     – Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão perfumada, tão limpa. Me sujei com você.
     – Nos sujamos quando acabou o amor. Agora vem, vamos dormir naquele banco. Vem, Ana.
     Ela puxou-lhe a barba.
     – Quando foi que fiquei assim imunda, fala!
     – Mas eu já disse, foi quando deixou de me amar.
     – Mas você também — ela soqueou-lhe fracamente o peito. — Nega que você também…
     – Sim, nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz.
Vem.
     – O banco é frio.
     Quando ele a tomou pela cintura chegou a se assustar um pouco: era como se estivesse carregando uma criança, precisamente aquela menininha que fugira há pouco com seu pedaço de bolo. Quis se comover. E descobriu que se inquietara mais com o susto da menina do que com o corpo que agora carregava como se carrega uma empoeirada boneca de vitrina, sem saber o que fazer com ela.
Depositou-a no banco e sentou-se ao lado. Contudo, era lua crescente. E estavam em Amsterdã. Abriu os braços. Tão oco. Leve. Poderia sair voando pelo jardim, pela cidade. Só o coração pesando — não era estranho? De onde vinha esse peso? Das lembranças? Pior do que a ausência do amor, a memória do amor.
     – E onde estão os outros? Para a viagem? Você não disse que era aqui o reino deles? — perguntou ela dobrando o corpo para a frente até encostar o queixo nos joelhos. — Tudo invenção. Isso de Marte ser pedregoso, deserto. Uma vez fui lá, queria tanto voltar. Detesto este jardim.
     – Perdemos o outro.
     – Que outro?
     A voz dela também mudara: era como se viesse do fundo de uma caverna fria. Sem saída. Se ao menos pudesse transmitir-lhe esse distanciamento. Nem piedade nem rancor.
     – Você sabia, Ana? Algumas estrelas são leves assim como o ar, a gente pode carregá-las numa maleta. Uma bagagem de estrelas. Já pensou no espanto do homem que fosse roubar essa maleta? Ficaria para sempre com as mãos cintilantes, mas tão cintilantes que não poderia mais tirar as luvas.
     – Olha minhas unhas. Até a menininha fugiu de mim — queixou-se ela enlaçando as pernas.
     – Desconfiou que você ia avançar no seu bolo.
     – Olha minhas unhas. Será que aqui também dão comida em troca de sangue?
     – Não sei.
     – Uma droga de comida. Aquela de Marrocos — disse ela esfregando na areia a sola da sandália.
     – Nosso sangue também deve ser uma droga de sangue.
     O silêncio foi se fazendo de pequenos ruídos de bichos e plantas até formar um tênue tecido que perpassava pela folhagem, enganchava-se imponderável numa folha e prosseguia em ondas até se romper no bico de um pássaro.
     – Queria um chocolate quente com bolo. O creme, eu enchia uma colher de creme que se espalhava na minha boca, eu abria a boca…
     Abriu a boca. Fechou os olhos. Ele sorriu.
     – Estou ouvindo uma música, a gente podia dançar. Se a gente se amasse a gente saía dançando…
     Ela levantou as mãos e passou as pontas dos dedos nos cabelos. Na boca.
     – E agora? O que acontece quando não se tem mais nada com o amor?
     Quase ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro, onde fumara o último?
     – Quando acaba o amor, sopra o vento e a gente vira outra coisa — respondeu ele.
     – Que coisa?
     – Sei lá. Não quero é voltar a ser gente, eu teria que conviver com as pessoas e as pessoas… — ele murmurou. —
     Queria ser um passarinho, vi um dia um passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de um passarinho de penas azuis, os olhinhos lustrosos. Acho que eu queria ser aquele passarinho.
     – Nunca me teria como companheira, nunca. Gosto de mel, acho que quero ser borboleta. E fácil a vida de borboleta?
     – É curta.
     O vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo dentro do guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do banco vazio. Procurou os forasteiros por entre as árvores, voltou até o banco e alongou o olhar meio desapontado pela alameda também deserta. Ficou esfregando as solas dos sapatos na areia fina. Guardou o bolo no bolso e agachou-se para ver melhor o passarinho de penas azuis bicando com disciplinada voracidade a borboleta que procurava se esconder debaixo do banco de pedra.

Em: Pomba Enamorada ou uma Hostória de Amor e outros contos
L&PM, Porto Alegre, reimpressão em 2013. Pág.132

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