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Mostrando postagens de agosto, 2024

Poemas da MPB: Amarelo, Azul e Branco, Anavitória

Deixa eu me apresentar Que eu acabei de chegar Depois que me escutar Você vai lembrar meu nome É que eu sou de um lugar Onde o céu molha o chão Céu e chão gruda no pé Amarelo, azul e branco Deixa eu me apresentar Que eu acabei de chegar Depois que me escutar Você vai lembrar meu nome É que eu sou de um lugar Onde o céu molha o chão Céu e chão gruda no pé Amarelo, azul e branco Eu não sei (não sei), não sei (não sei) Não sei diferenciar você de mim Não sei (não sei), não sei (não sei) Não sei diferenciar Ao meu passado Eu devo o meu saber e a minha ignorância As minhas necessidades, as minhas relações A minha cultura e o meu corpo Que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele Eu vim pra te mostrar A força que eu tenho guardado O peito 'tá escancarado E não tem medo, não, não tem medo Eu canto pra viver Eu vivo o que tenho cantado A minha voz é meu império A minha proteção Eu vim pra te mostrar A força que eu tenho guardado O peito 'tá escancara

Beretê, poema de Olegário Mariano

Beretê! No teu sangue tumultua O ódio às bandeiras invasoras... Passa Da tua vida na paisage nua O amor - vento de glória e de desgraça. Se em tu corpo morno se insinua Flor de beleza e de frescura, - a graça, O orgulho dos teus gestos perpetua O indomável ardor da tua raça. Em teus olhos pequenos e selvagens Como no espelho imóvel das paisagens Vejo rios, penhascos e cachoeiras... E a tua voz sem timbre me parece Um som confuso de borés que viesse Do fundo das florestas brasileira... Imagem: Mulher mulata, Portinari 1939

Mulher da Vida, poema de Cora Coralina

Mulher da Vida, minha Irmã. De todos os tempos. De todos os povos.De todas as latitudes. Ela vem do fundo imemorial das idades e carrega a carga pesada dos mais torpes sinônimos, apelidos e apodos: Mulher da zona, Mulher da rua, Mulher perdida, Mulher à-toa. Mulher da Vida, minha irmã. Pisadas, espezinhadas, ameaçadas. Desprotegidas e exploradas. Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito. Necessárias fisiologicamente. Indestrutíveis. Sobreviventes. Possuídas e infamadas sempre por aqueles que um dia as lançaram na vida. Marcadas. Contaminadas, Escorchadas. Discriminadas. Nenhum direito lhes assiste. Nenhum estatuto ou norma as protege. Sobrevivem como erva cativa dos caminhos, pisadas, maltratadas e renascidas. Flor sombria, sementeira espinhal gerada nos viveiros da miséria, da pobreza e do abandono, enraizada em todos os quadrantes da Terra. Um dia, numa cidade longínqua, essa mulher corria perseguida pelos homens que a tinham maculado. Aflita, ouvindo o tropel dos perseguidores e o

José do Patrocínio e Olavo Bilac Não Sabiam Dirigir (nem um triciclo!)

     Em 1897, José do Patrocínio, abolicionista, jornalista, dono do jornal A Cidade do Rio e fundador da Academia Brasileira de Letras, retornou de uma viagem a Paris com um   automóvel , um triciclo a vapor inventado pelo francês Léon Serpollet. O veículo era uma novidade tecnológica na Europa e, ainda mais, no Brasil, onde automóveis eram raridade. A invenção de Serpollet consistia em uma caldeira menor e mais eficiente, adequada para uso em automóveis, desenvolvida apenas um ano antes.      Patrocínio anunciou com entusiasmo a compra do  veículo : “Trago de Paris um carro a vapor… O Veículo do Futuro, meus amigos. Um prodígio! Léguas por hora. (…) É a morte de tudo, dos tílburis, dos carros [puxados por cavalos], do bonde… até da estrada de ferro. Ficamos senhores da viação. É a fortuna.”     O automóvel causou alvoroço entre os cariocas, que, conforme relatou o cronista João do Rio, viam o veículo com curiosidade e espanto.      Olavo Bilac, renomado poeta brasileiro e amigo de Pa

Fantasmas... conto de Osman Lins

     Era um trabalhador. Caíssem em chuva todas as nuvens do céu, ou queimasse o sol as flores dos  vergeis, nada o afastava da rotina impassível do seu viver. À noite, voltava suado, mas alegre: cansado, mas satisfeito. A esposa esperava-o sempre com o café coado de fresco, morno, cheiroso, entrando pelas narinas, gostosamente... E quantas vezes, nas noites de lua, saía Serafim para trabalhar? Aquele pedaço de terra cultivada era a sua maior obsessão. Quando a chuva caía, na sua ablução solícita e universal, limpando as folhas, aguando as flores, molhando tudo, então era uma festa. Mas, ai dele se a chuva era demais... As gotas esparsas iam chegando formando poças, gerando regos que se enfureciam na transposição de sua grandeza efêmera. Iam por ali afora, pelo campo, pelo  seu mundo, cavando o chão, arrancando dolorosamente numa insensibilidade amarga as mandiocas promissoras e os canaviais verde-amarelos. Mas não desanimava nunca. E no fim do ano tinha sempre o dinheiro para pagar ao

Fábula e Roda dos Três Amigos, poema de Frederico Garcia Lorca

Henrique, Emílio, Lorenzo. Estavam os três gelados: Henrique pelo mundo das camas; Emilio pelo mundo dos olhos e das feridas das mãos, Lorenzo pelo mundo das universidades sem telhados. Lorenzo, Emilio, Henrique. Estavam os três queimados: Lorenzo pelo mundo das folhas e das bolas de bilhar; Emílio pelo mundo do sangue e dos alfinetes brancos; Henrique pelo mundo dos mortos e dos jornais abandonados. Lorenzo, Emílio, Henrique. Estavam os três enterrados: Lorenzo em um seio de Flora; Emílio na hirta genebra que se esquece no copo; Henrique na formiga, no mar e nos olhos vazios dos pássaros. Lorenzo, Emílio, Henrique, foram os três em minhas mãos três montanhas chinesas, três sombras de cavalo, três paisagens de neve e uma cabana de açucenas pelos pombais onde a lua pousa plana sob o galo. Um e um e um. Estavam os três mumificados, com as moscas do inverno, com os tinteiros que o cão urina e o vilão despreza, com a brisa que gela o coração de todas as mães, pelas brancas quedas de Júpite

Vamos Pensar?

 

Vida em Branco, poema de Zélia Duncan

Você não precisa de artistas? Então me devolve os momentos bons Os versos roubados de nós Arranca o rádio do seu carro Destrói a caixa de som Joga fora os instrumentos E todos aqueles quadros Deixa as paredes em branco Assim como é sua cabeça Seu céu de cimento Silêncio cheio de ódio Nenhuma canção pra ninar E suas crianças em guarda Esperando a hora incerta Pra mandar ou receber rajadas Você não precisa de artistas? Então fecha os olhos, mora no breu Esquece o que a arte te deu Nenhum som, nenhuma cor Nenhuma flor na sua blusa Nem Van Gogh, nem Tom Jobim Nenhum Gonzaga, ou Diadorim Você vai rimar com números Vai dormir com raiva e acordar sem sonhos, sem nada E esse vazio no seu peito Não tem refrão pra dar jeito Não tem balé pra bailar Você não precisa de artistas? Então nos perca de vista Nós deixe de fora Desse seu mundo perverso Sem graça, sem alma. 

A Nova Casa, crônica de Carlos Eduardo Novaes

Meu amigo Luiz está se mudando. Mês que vem deixa a casa dos 70 e de mala e cuia se muda para a casa dos 80. Luiz pretende viver uns bons anos na nova casa, mais próxima do fim da rua. Ele sabe que estou morando lá há mais de dois anos e perguntou-me se gostei da mudança. Ora, não se tratou de gostar ou não. Terminou meu tempo na casa dos 70 depois de 10 anos, e saí feliz porque podia ter sido despejado antes do final do contrato. Assim como a casa dos 20 lembra uma universidade, a casa dos 60, um posto do INSS, a casa dos 80 lembra uma clínica geriátrica. Lembrava! Quando entrei na casa a primeira surpresa foi vê-la cheia de “cabeças brancas”. Na época da minha avó alcançar a casa dos 80 era uma façanha olímpica, para poucos. A segunda e maior surpresa foi ver a “rapaziada”, pulando, malhando, correndo, namorando, como se não houvesse amanhã.  De uns anos para cá a casa dos 80 foi aumentada com vários puxadinhos, para abrigar tanta gente. E não é só! Da minha janela vejo que estão re

O Menino de Água, conto de Valter Hugo Mãe

O menino nadou para depois de uma onda grande e não voltou. A mãe estendeu as mãos na água buscando o seu corpo diluído. Julgava ela que o filho se diluíra como um cubo de açúcar incapaz de adocicar o mar. Jurou que o buscaria sempre. Haveria de o reconhecer nem que ele se tornasse ínfimo. Saberia dele escondido na mais insignificante gota de água. Jurava. Se o seu menino estivesse por ali, ela nunca o ignoraria.      Nadou ao fim do mar, à boca dos tubarões, dentro do vazia das baleias, sob as barrigas cegas dos barcos, no pensamento dos peixes e nas suas costas, entre as areias,  atrás das pedras e debaixo.  Buscou na cintilação quando a liuz entrava água adentro fazendo de tudo um cristal gigante, podia ser que o filho fosse agora uma estrela e só soubesse brilhar. A mãe olhava o brilho como se o brilho a tivesse também a observar. Esperava e, de todo modo, ficaria para sempre a esperar.      Nunca secava o corpo porque a água era agora o seu menino. Molhava-se, estendia as mãos em

Vamos Pensar: Dia dos Pais

 

Faz da Tua Casa Uma Festa, Cora Coralina

Faz da tua casa uma festa! Ouve música, canta, dança... Faz da tua casa um templo! Reza, ora, medita, pede, agradece... Faz da tua casa uma escola! Lê, escreve, desenha, pinta, estuda, aprende, ensina... Faz da tua casa uma loja! Limpa, arruma, organiza, decora, muda de lugar, separa para doar... Faz da tua casa um restaurante! Cozinha, prova, cria, cultiva, planta... Enfim... Faz da tua casa Um local criativo de amor.

Uma Manhã Que Ficou Na Tela da Memória, Cadê Você? Antonio Neto

Uma neblina fina cobria o caminho que levava à casa para onde nos dirigíamos. Onde era, eu não  sabia...Era uma estrada feita de imprecisão, de miragens e de iluminuras. Um tapete de orvalho se estendia por toda parte. Apenas os nossos passos e a nossa respiração quebravam o decreto do silêncio. Era 1973, eu tinha 3 anos. Caminhava, tentando acompanhar os passos longos dos meus pais, porque eles tinham que carregar o meu irmãozinho recém nascido e a bolsa com nossos pertences. Eles se revezavam nessa tarefa. Os meus passos eram curtos, havia pedrinhas no caminho e era preciso ter cuidado para não cair.  A estrada era longa, ladeada por imenso eucaliptal. A neblina brincava de atravessar a estrada, de criar figuras estranhas no ar. Ora apareciam unicórnios, ora surgiam peixinhos e outras figuras feitas de fumaça que iam nos seguindo naquele caminho de não sei onde. De repente, ao longe, alguém ligou um rádio. Parei para escutar!  Era uma voz masculina, bonita! Os acordes da música me fi

Um Apólogo, conto de Machado de Assis

      Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: – Por que está você com esse ar, toda  cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?        – Deixe-me, senhora.       – Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.       – Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.       – Mas você é orgulhosa. – Decerto que sou.       – Mas por quê?       – É boa! Porque coso2 . Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?      – Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?       – Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...      – Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, pu

Aviso I - Amanda Lovelace

esta história não é um conto de fadas bruxas. não há bruxas não há caça às bruxas. não há os caras dos fósforos não há fogueiras não há uma revolução de fogo esta é uma história simples na qual as mulheres lutam contra a estrutura criada pelos homens que permaneceu muito mais tempo do que devia. Em: a bruxa não vai para a fogueira neste livro, Amanda Lovelace. Ed. Leya 2018, pág.15 .