Segunda capa do livro Noite em Caracas. |
É uma morte alegórica e política. As sociedades regidas por ditadura têm um poder que devora os indivíduos, não há melhor definição disso”, explica Karina.
“Às vezes digo que nunca saí porque minha cabeça permanece ali. Mas saí porque fui desenraizada, já não pertenço a lugar nenhum."
"Temos um país que expulsa seus netos, persegue as pessoas. O desenraizamento dessa geração, o medo e a ansiedade te fazem sentir culpado.”
A escritora se sentiu por muitos anos sem direito de falar sobre seu país. E, por isso, pede um olhar cuidadoso aos leitores, sem julgamentos. “Não é um livro político, é literatura. O que eu fiz foi falar de coisas terríveis. Eu quero que gere empatia, mas um autor não consegue controlar o que seu livro provoca.”
Seu romance mistura personagens de diferentes países da América Latina porque, para ela, é um problema que extravasa as fronteiras da Venezuela.
“É vital falar sobre os ciclos autoritários da América Latina. Temos muito em comum, recebemos chilenos, argentinos, mentes brilhantes que nos ajudaram a construir nosso país. Por isso quis formar um grande coro de migrantes e peregrinos”, explica.
(Flip 2019) Do G1 em 12/7/19
Prometeram. Que nunca ninguém mais roubaria, que tudo seria para o povo, que cada qual teria a casa de seus sonhos, que nada de mau voltaria a acontecer. Prometeram até dizer chega. As pregações não atendidas se descompuseram sob o calor do ressentimento que as alimentava. Nada do que acontecia era de responsabilidade dos Filhos da Revolução. Se as padarias estavam vazias, o culpado era o padeiro. Se a farmácia estava desprovida, o farmacêutico seria o responsável. Se chegávamos em casa exaustos e famintos, com dois ovos numa sacola, a culpa seria de quem, neste dia, tinha conseguido o ovo que nos faltava. Com a fome se desatou a longa lista de ódios e medos. Flagramo-nos desejando mal ao inocente e ao algoz. Éramos incapazes de distingui-los.
Começou a crescer dentro de nós uma energia desorganizada e perigosa. E com ela a vontade de linchar quem nos subjugava, de cuspir no militar contrabandista que revendia os alimentos regulados no mercado negro ou no esperto que pretendia nos tirar um litro de leite nas longas filas que se formavam às segundas-feiras à porta de todos os supermercados. Ficávamos felizes com coisas funestas: a morte súbita de algum hierarca afogado sem explicação no rio mais bravo das planícies centrais, ou a explosão em pedaços de algum fiscal corrupto, assim que uma bomba escondida sob o assento de seu quatro por quatro luxuoso vir à tona ao dar partida no automóvel. Esquecemo-nos da compaixão porque ansiávamos por cobrar o espólio daquilo que não ia bem. (págs 66-67)
Os dias se pareciam mais à intendência de uma guerra do que à vida: algodão, gazes, medicamentos, camas sujas, bisturis cegos, papel higiênico. Comer ou se tratar, nada mais. A pessoa seguinte na fila era sempre um potencial inimigo, alguém que possuía algo mais. Os que sobreviviam lutavam a dentadas pelas sobras. Naquela cidade sem desenlaces, brigávamos por um lugar para morrer. (pág.67)
Obrigada por partilhar esses trechos.
ResponderExcluirhttps://cafeebonslivros.com/
Bom dia, Kelly. Ainda estou impactada por esse livro. Recomendo.
ResponderExcluirMuito forte o relato dela
ResponderExcluirMuito mesmo. Os quatro melhores livros que li esse ano, por coincidência, são de mulheres: A Organização, de Malu Gaspar,A Bíblia Envenenada, de Barbara Kingsolver, Carta à Rainha Louca, de Maria Valeria Rezende e Noite em Caracas, de Karina Sainz Borgo. recomendo todos
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