Imagem: Regina Porto |
Há, desde a entrada, um
sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão têm uma velha
ferrugem e o trinco se oculta num lugar que só a mão filial conhece. O
jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas,
tinhorões e samambaias que a mão filial, fiel a um gesto de infância,
desfolha ao longo da haste.
É sempre quieta a casa materna, mesmo
aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do
almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas
salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado, sobre o
qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas
manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como
em prece, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando
eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se
amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de
flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as
mãos maternas careciam sonhar.
A casa materna é o espelho de
outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava ao tempo em que
tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô. E
tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com
negras aberturas para quartos cheios de sombra. Na estante junto à
escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo.
Foi ali que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que
passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso.
Na
escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença
dos passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o
térreo, onde se processa a vida presente, e o de cima, onde vive a
memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na geladeira e no armário da
copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas, untuosas
compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta — pois não há lugar
mais propício que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é
uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma
repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os
livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual
ninguém, a não ser a figura materna, sabe por que queima às vezes uma
vela votiva.
E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação
diurna. Hoje, vazia.
A imagem paterna persiste no interior da casa
materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que
se marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda
o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa
materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade,
enquanto as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais mais
unidas em torno à grande mesa, onde já agora vibram também vozes
infantis.
Fonte: Contioutra.
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