Padre Graça acordou de madrugada.
Rezou, fez a higiene matinal, comeu pouco, como de hábito, e preparou a pequena
mala com os objetos litúrgicos. O São João Batista o aguardava. Havia vinte e
quatro anos cumpria a função de levar a palavra de Deus para famílias que
perderam seus entes queridos. No início, via sentido em ser capelão, não mais.
Preferia ser transferido para uma comunidade pequena, onde ainda houvesse
fieis. Via o quanto os seres urbanos eram hostis e descrentes da paz eterna. O
entusiasmo de seminarista cedera espaço a um isolamento estéril, sem saída. O
convívio excessivo com a morte o tornara insensível. Não se adequava mais ao
cargo. O pedido de transferência fora enviado meses antes, mas os superiores
não demonstravam pressa para encontrar substituto. Padre Graça esperava
resignado. Por isso, a perspectiva de enfrentar a sequência de velórios, no
longo dia quente que se anunciava, lhe consumiu os sentidos. Teria perdido a
fé?
Quem o visse entrar no 136, em Botafogo,
não suspeitaria da batalha que travava no silêncio do espírito. A ideia de abandonar a batina o seduzia
especialmente à noite, como um demônio insistente. O padre lhe dava as costas,
mas, de uns tempos para cá, gastava as horas a se revirar, sem conseguir
espantar a vontade traiçoeira. Seria professor, enfermeiro, bancário, cuidaria
ele mesmo de Deus, sem ter que impô-Lo a ninguém. Estava cansado da cruzada
contra o fogo amigo dos evangélicos e o inimigo dos ateus. Perdemos a luta.
E foi dominado por dúvidas que padre Graça
abriu os trabalhos naquela manhã, encomendando a alma de uma bisavó de sete,
avó de quinze, mãe de quatro e viúva de um. Apesar da tristeza, os parentes se
mostraram resignados co a partida da matriarca. Católicos praticantes, se
empenharam na missa. O santo homem chegou a esquecer, por breves instantes, a
atual rejeição que nutria pela própria função. No final, agradeceu aos
presentes e confessou: Entrei aqui sem esperança, saio com ela redobrada.
As visitas seguintes reduziram a cinzas a
comunhão da manhã. Um adolescente, uma mãe ainda jovem e um pai atencioso. De
um total de cinco, apenas a anciã da manhã e um velho ao cair da tarde seguiam
a lógica natural, a ordem que deveria impedir que as mães enterrassem rebentos,
que os bebês se vissem privados do carinho materno e que os pais faltassem na
hora da necessidade. Novamente abalado pela quantidade de vezes em que Deus
parecia dormir, padre Graça se deixou arrastar pelo pessimismo. Sou um coveiro
de Deus, desabafou em voz baixa.
No estertor do dia, subiu amargurado as
escadas da capela a caminho do salão de número 10.Chegou a reduzir a marcha,
certo da incapacidade de oferecer conforto. Preciso eu de consolo. Quem me
dará? Foi quando surgiu o ensejo, a ideia, a tentação. Cabia ao pároco ser
firme no justo instante em que o rebanho se mostra mais vulnerável. A
fragilidade diante da morte torna propícia a revelação. O engano residia na
benevolência passiva do sacerdote. De que serve a misericórdia? O catolicismo
deve eleger a firmeza como aliada. Afaste de mim a bondade. Serei impiedoso,
viril, romano, bélico e voraz. O lado terrível do ser divino. O Antigo
Testamento é meu guia.
E, certo da recente convicção, adentrou o
salão de número 10 às quatro e quarenta e cinco da tarde daquela terça-feira,
estancou na soleira e bradou a cruel pergunta:
- Quem será o próximo?
Padre Graça calou-se, parado, segurando a
porta entreaberta, sem saber se aquele era o início ou o grand finale da missa.
A questão do fim iminente deveria despertar a consciência dos vivos, mas não
havia sinal de elevação. A estupefação dos ouvintes exprimia apenas reprovação.
Padre Graça pousou os olhos numa velha dama elegante que o mirava assombrada.
Era Irene. A próxima. Graça arrependeu-se da bravata, ensaiou uma reverência
acanhada e partiu sem fechar a porta. Desceu a escadaria, foi até a secretaria;
não havia ninguém por quem orar. O dia estava encerrado. Sua carreira também.
In: Fim. Fernanda Torres, São
Paulo,
Cia. Das Letras, 2013, págs.40-42.
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