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Mostrando postagens de junho, 2016

Nós Três, Paulo Maldonado

     Dirijo de volta, Sílvio emborcado ao meu lado. Passa da meia-noite. Deixamos Pedro no Flamengo e atravessamos Botafogo, em direção à Barra.     Nossos encontros servem de refresco para as aporrinhações do trabalho, mulher e filhos. São a confirmação de nossa amizade, valor maior que cultuamos nesse tempo de puro egoísmo e solidão. As regras foram se estabelecendo naturalmente: só a pedido falamos de assuntos pessoais e de família; evitamos o mau humor e a depressão e só faltamos em casos graves. Discutimos futebol, política, mulheres, assuntos da semana, contamos piadas, falamos mal de conhecidos, fazemos todas as gozações permitidas pela intimidade. Mas, principalmente, enchemos a cara.       Pedro, antes de saltar no Flamengo, reclamou muito, contando que está de saco cheio da mulher, fica acordada esperando ele chegar, cheia de ciúmes, diz que somos viados, tem muita chiação, choro e há semanas ele está dormindo na sala.     Vi esse filme montão de vezes. Filho ún

Deixe Junho Pro São João, Braulio Tavares.

Deixe o batuque do axé Tracunhaém-PE junho 2014 - Imagem de Regina Porto pro carnaval da Bahia e a insana pornografia não troque no arrasta-pé. Rapariga e cabaré? Em nenhuma ocasião. E o forró da ostentação Reinando o falso interesse? Não faça um negócio desse, Deixe junho pro São João. Pelo menos uma vez Esqueça Michel Teló E deixe eu dançar forró Os trinta dias do mês. Um disco de Marinês, O gogó de Assisão E o nosso Rei do Baião, Cantando Zé Marcolino, Só esse mês é junino, Deixe junho pro São João. Com seu povo tenha zelo, Respeite nossa raiz, Não ouça o cantor que diz Que o melhor é o desmantelo. Deixe a escova do cabelo De Wesley Safadão Pro Programa do Faustão Que aqui é outra lisura, Não mate nossa cultura, Deixe junho pro São João. Deixe a tal da muriçoca Se enganchar no mosqueteiro, Contrate Alcimar Monteiro   Que nossa música toca. Deixe o funk carioca Tremendo seu paredão Pra quando uma guarnição Passar baixando o volume, Perca esse

Chegada, Michael Ondaatje

          Chegamos sorrateiramente à Inglaterra durante a noite. Depois de tanto tempo no mar, não pudemos assistir à nossa entrada no país. Somente a barcaça do prático, com sua luz azul piscante, nos esperava na entrada do estuário, nos guiando para o Tâmisa ao longo de uma costa desconhecida e às escuras.     Sentimos um cheiro súbito de terra. Quando o sol por fim iluminou o que havia a nosso redor, parecia que estávamos num local humilde. Não vimos margens verdejantes, cidades famosas nem grandes pontes levadiças capazes de erguer dois arcos a fim de nos abrir passagem. Tudo lembrava os resquícios de uma antiga era industrial - molhes, pântanos de água salgada, entradas de canais dragados. Deixamos para trás navios-tanque e boias de amarração. Procuramos pelas ruínas heráldicas estudadas a milhares de quilômetros dali numa aula de história em Colombo. Vimos uma flecha de torre e depois chegamos a um lugar cheio de nomes: Southend, Chapman Sands, Blyth Sands,Lower hope, Sho

Manhã de Inverno, Machado de Assis

C oroada de névoas, surge a aurora  Por detrás das montanhas do oriente;  Vê-se um resto de sono e de preguiça,  Nos olhos da fantástica indolente.  Névoas enchem de um lado e de outro os morros  Tristes como sinceras sepulturas,  Essas que têm por simples ornamento  Puras capelas, lágrimas mais puras.  A custo rompe o sol; a custo invade  O espaço todo branco; e a luz brilhante  Fulge através do espesso nevoeiro,  Como através de um véu fulge o diamante.  Vento frio, mas brando, agita as folhas  Das laranjeiras úmidas da chuva;  Erma de flores, curva a planta o colo,  E o chão recebe o pranto da viúva.  Gelo não cobre o dorso das montanhas,  Nem enche as folhas trêmulas a neve;  Galhardo moço, o inverno deste clima  Na verde palma a sua história escreve.  Pouco a pouco, dissipam-se no espaço  As névoas da manhã; já pelos montes  Vão subindo as que encheram todo o vale;  Já se vão descobrindo os horizontes.  S

Epitáfio, Regina Ruth Rincon Caires

      Domitila sentou-se novamente ao lado do minúsculo túmulo, debruçou o corpo sobre ele, como se o abraçasse. Fechou os olhos e sentiu uma paz que havia muito não sentia. Não tinha mais cansaço, nem dor, não havia mais agonia. Cumprira a missão.     Tudo começou por ali, nos arredores daquela vila. Ali viveram seus pais, e ali elas nasceram. Tempos difíceis, sem qualquer recurso. Lembrava-se dos olhos tristonhos da mãe ao falar sobre o encanto da filha mais velha. Da vivacidade dos seus oito meses de vida, da alegria, da pele rosada, dos olhos cristalinos, das coxas roliças.             E , num repente, na extensão de apenas um dia, ela se foi. Começou com um pequeno desarranjo, julgado como reação pelo despontar dos dentes, e no começo da noite agravou-se com uma febre incontrolável. Mesmo com a débil claridade da lamparina, ficava visível nas pequenas bochechas rubras a intensidade da febre. E a prostração do amado corpinho evidenciava a gravidade do quadro. Tudo