Pular para o conteúdo principal

Desafio do Facebook - 2º dia: Rubem Alves


   De vez em quando sou convidada a participar de algum desafio lá no Facebook, sempre aceito e posto o que for pedido. 
Desta vez, achei por bem trazer para o blog o desafio que recebi da Marilda: 4 textos, de qualquer gênero, estilo, autor. Um por dia durante quatro dias.   
Vamos lá, então:


O Jogo Peteca-lembrança   

Escrever me dá muita alegria pelo retorno que recebo dos meus leitores. Pena que não haja formas de responder a todos, um por um. A arte é muito longa, e o tempo é muito curto. Mas, de vez em quando...É o que aconteceu. Recebi uma carta de uma pessoa, a propósito de um texto meu. vou transcrever:
  
                     
     Rubem Alves, você escreve para a alegria de nossas almas. Alimenta quem os anos já embranqueceram os cabelos, a memória já esvaindo-se, mas com a sensibilidade à flor da pele. A crônica "Amar sem esperar retribuição", refererindo-se ao jogo das petecas, cativou-me... Tenho mais de oitenta anos, sou viúve, fiz cinquenta anos de casada e ainda tenho a peteca-lembrança , bem guardada... A princípio joga-se com o companheiro: paixão, risos, castelos, ilusões. Depois, já se derruba a peteca: briguinhas, ressentimentos; mas o jogo continua gostoso e atraente. A peteca cai a gente ergue, e o jogo segue com pequenas interrupções. então um triste dia, o parceiro parte, e o jogo interrompe. Como fazer para continuar o jogo sozinho, sem o sabor do companheirismo? Dei uma solução: o jogo-peteca lembrança. Guardei-a numa caixa, amarrei-a com uma fita verde-esperança. Um dia encontrarei o amado parceiro em outro degrau da vida e jogaremos eternamente, de mãos dadas.
                                                                       Assinado: Lurdes Camargo de Moura

Fiquei comovido com a carta de Lurdes. Mas, e o endereço?
Aí me chegou pelo correio, uma carta. Era dela! E ela contou detalhes:
Ter mais de oitenta anos, mudar de cidade, ser viúva, não é só fazer tricô, crochê e ver novelas. Resido há cinco anos em Campinas, com minha filha, genro e três netos. Se me perguntarem se está tudo "joia", eu respondo: "É só bijuteria"... Tenho as duas pernas fraturadas, um único rim, pressão alta. Em contrapartida, sou alegre, bem humorada, e uma bengala é o meu veículo precioso. Sem boas qualidades físicas, as espirituais estruturam a minha vida...
   Lurdes! O que você escreveu fez bem para a minha alma! Corrijo-me: você fez bem à minha alma! Você sabe que eu sou psicanalista e vivo andando pelos caminhos da alma. E há uma pergunta  para a qual não consigo encontrar resposta: Onde se encontram as fontes de alegria? Alguns acham que elas se encontram nas experiências infantis, que somos alegres ou tristes por causa das coisas que outros nos fizeram, quando éramos crianças. Eu não acredito nisso não. Acho que as fontes da alegria não se encontram no tempo. Acho que as fontes da alegria não são administradas pelo pai ou pela mãe. Minha suspeita é que elas se encontram na eternidade. A alegria é sempre inexplicável. Tem um profeta do Velho Testamento, Habacuque, que escreveu uma das orações mais lindas que conheço, e ela é linda por causa de uma única palavra: todavia. Ele começa a oração descrevendo campos devastados, árvores frutíferas sem frutos, currais sem vacas ou ovelhas. De repente ele interrompe o rol de desgraças e diz: " Todavia eu me alegrei..." Não há razões para a alegria. Ela é uma fonte da eternidade que emerge no tempo. Obrigado por você existir.
   Só há uma coisa que não entendi no que você escreveu. Você diz que chegará o dia em que você encontrará  o parceiro , e você tirará a peteca da caixa  em que você a guardou e vocês então jogarão peteca eternamente, de mãos dadas. Que estória é essa? Nunca vi ninguém jogar peteca de mãos dadas. Não tem jeito. Suspeito mesmo é que você não tem intenções de jogar peteca e que essas mãos dadas anunciam um jogo muito mais divertido...Quando o jogo de peteca é bom, terminado o jogo, guardada a peteca, um outro jogo a dois pode começar... Que assim seja, querida Lurdes.

(Se Eu Pudesse Viver Minha Vida Novamente...Rubem Alves Org. Raissa Castro Oliveira- 22ª ed.Campinas SP 2011)  Imagem: site da Revista Crescer.

Veja também:

1º dia: Adélia Prado
3º dia:Octávio Paz
4º dia:Mia Couto
 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard