No princípio tudo continuava normal, se por normal se
entende que um ser fabuloso, de cabelos encaracolados louros até os ombros e
asas de pena de ganso, como as que às vezes escapolem pelas costuras dos
edredons, descesse até a casa de Maria e, lá, no átrio de colunas românicas
-isso sim é que era estranho: colunas românicas em Nazaré- lhe anunciasse a
boa-nova.
O arcanjo, vendo a perturbação da mulher, entendeu que
o aparato cênico tinha sido realmente impressionante; talvez tivesse pesado um
pouquinho a mão. Para tranquilizá-la disse que não precisava ter medo, que
somente tinha vindo anunciar-lhe que teria um filho que se chamaria Jesus. A
mulher -claro- aceitou a notícia de bom grado, e o arcanjo desapareceu
instantaneamente, com a mesma desenvoltura com que havia aparecido. Horas mais
tarde, quando o marido, José, voltou da oficina -era carpinteiro-, Maria lhe
contou o que havia acontecido. José ficou pasmo.
Também fica dentro da normalidade mais absoluta a
disposição do imperador Augusto, que ordenava que todos os súditos do Império
Romano se recenseassem, cada um no povoado ou na cidade de onde a família fosse
originária. Por isso, José e Maria pegaram o burro e seguiram rumo a Belém.
Maria ia sobre o animal, sentada de lado, e José a pé, puxando as rédeas.
O que -como as colunas românicas- também não era nada
normal era aquela história toda de neve. Quando chegaram a Belém viram que o
povoado inteiro estava coberto de neve, até o horizonte, sobre o qual pairava
um céu negro e com estrelas de cinco e seis pontas, imóveis e como que
recortadas. Na Palestina a neve era um fenômeno meteorológico quase ignorado.
Gerações e gerações de cidadãos nasciam e morriam sem tê-la conhecido, sem que
isso os preocupasse nem um pouco. E se já tinham ouvido falar, era por
viajantes de países distantes, que mencionavam até mesmo montanhas onde a neve
é eterna. Os nativos os escutavam encantados, mas, assim que os viajantes
terminavam a narrativa, voltavam ao trabalho sem que a neve lhes tirasse nem
uma hora de sono. Por outro lado, agora tudo estava nevado: as montanhas, as ruas,
os terraços das casas, a barraca da vendedora de castanhas... Era neve em pó,
tão em pó que parecia farinha.
Por causa da afluência de gente para se recensear, não
encontraram nenhum quarto livre em toda Belém. Os habitantes não eram muito
acolhedores; nem a imagem de uma mulher grávida os movia à piedade. Por isso se
viram forçados a instalar-se em um estábulo abandonado. Limparam um canto,
perto de um boi adormecido e do burro que levavam. Foi lá que, no dia 25 de
dezembro, Maria deu à luz. Era um menino lindo, saudável e chorão. José pegou-o
nos braços para limpá-lo. Mas Maria reclamou novamente sua atenção. Estava
nascendo um segundo menino.
Eram dois meninos lindos, e cada um com sua auréola
tipo holograma sobre a cabeça. Depois de alimentá-los e pôr as fraldas -sorte
que Maria tinha previsto algumas de reserva-, deitaram-nos sobre um monte de
palha, um ao lado do outro. Moviam as mãos. O boi e o burro contemplavam a cena
com o rabo do olho.
- Você tem certeza de que ele falou em um menino? Será
que não eram dois e você não prestou atenção?
José não entendia o que tinha acontecido. Que fossem
dois perturbava todos os planos. Até mesmo uma coisa tão pouco importante como
a questão do nome. O arcanjo tinha noticiado que havia de se chamar Jesus. Era
um nome que não os desagradava: tampouco os entusiasmava, se temos de ser
sinceros. Naquela época, os nomes predominantes eram Sandra, Vanessa, Kevin,
Jonathan e mesmo Sue Ellen, que lhes pareciam frívolos e pretensiosos. José e
Maria haviam considerado outros nomes e até tinham feito uma lista dos que
preferiam: Davi, Samuel, Alexandre, Abel, Moisés, Ivã...
De todos, o que mais lhes agradava era Alexandre. Era
um nome sonoro e vibrante. Se o arcanjo não tivesse deixado tão claro que
haviam de chamá-lo Jesus, teriam-lhe posto Alexandre, sem nenhuma sombra de
dúvida. Mas, enfim, como não podia se chamar Alexandre, para Maria o nome de
Jesus já parecia bom. Em algum momento, José tinha proposto que se chamasse
como ele: José. Muitos amigos seus punham seu nome no primogênito. Por que não
ele? Maria não tinha nem querido ouvir falar de uma possível troca.
- O arcanjo disse que se chamaria Jesus e vai se chamar
Jesus.
Não falaram mais nisso. Iria se chamar Jesus; estava
decidido. Mas agora se viam com dois meninos, o dobro do que esperavam. Que
nome colocariam neles? Depois de muito ruminar sobre o tema, encontraram a
solução. Um se chamaria Jesus Maria e o outro Jesus José. Assim respeitavam a
ordem de dar o nome de Jesus e de passagem satisfaziam o desejo de José: ao
menos um dos dois se chamava como ele, ainda que fosse o segundo nome.
Esse era apenas o princípio das duplicações. A partir
daquele momento -refletia José- tudo seria duplo. As fraldas, as roupinhas, as
chupetas,o consumo de baby wipes.
Um barulho de cascos o tirou da reflexão. Eram camelos
que atravessavam, por uma frágil ponte de madeira, as águas do rio, que
pareciam imóveis e de papel prateado. Quando chegaram ao estábulo, os três Reis
Magos ficaram atônitos. Era a mesma surpresa que Maria e José tinham visto nas
caras dos pastores que haviam se aproximado para adorar o menino e, em vez de
um, tinham encontrado dois. Um dos pastores, que tinha trazido como presente um
carrinho de bebê Chicco de um assento, correu para trocá-lo por um modelo
duplo. Melchior, Gaspar e Baltazar -homens acostumados a mil batalhas e destros
em tomar decisões- reagiram de modo rápido e, sem que nem Maria e José
percebessem, fazendo como se procurassem os presentes, dividiram em duas partes
mais ou menos iguais o ouro, o incenso e a mirra.
Os dois eram filhos de Deus? Ou só um deles era? A
pergunta não tinha resposta clara porque, embora um deles (Jesus Maria)
caminhasse sobre as águas quando os lavavam na banheira -deixando admirado não
só seu irmão como também os pais-, era o outro (Jesus José) que, quando tinham
acabado os danoninhos, os multiplicava sem problemas. Essa dualidade -calculava
Alexandre enquanto colocava o "caganer" 1 ao lado do padre
com guarda-chuva- os manteria ao longo dos anos, até o fim de suas vidas.
Alexandre voltou a alinhar os dois bercinhos, contemplou outra vez o presépio e
correu gritando para seu pai, reputado membro da Opus Dei, que fosse vê-lo.
Estava certo de que o deixaria feliz por seu engenho: em vez de jogar fora a
figurinha do menino Jesus do antigo presépio (uma das poucas que não estavam
trincadas), incorporou-a às novas, que haviam comprado um dia antes na feira de
Santa Lúcia. Não sabia que, naquela noite, seu engenho lhe custaria ir dormir sem
jantar.
NOTA
1. Figura em posição de defecar, popular nos presépios da Catalunha
1. Figura em posição de defecar, popular nos presépios da Catalunha
QUIM MONZÓ, 51, é escritor
catalão, autor de "O Porquê de Todas as Coisas" (Globo).
RONALD POLITO, 52, é
tradutor.
DANIEL BUENO, 39, é artista gráfico
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