Ora João, tu tinhas
um vestido de peles de camelo, e uma cinta de couro em volta dos teus rins; e a
tua comida era gafanhotos e mel silvestre. E a filha de Herodias bailou, e era
linda. E quando disse o que queria neste mundo o rei entristeceu. Eras a voz
que clama do deserto, e clamavas na cadeia. E tua cabeça veio num prato para as
mãos da bailarina.
João, esta geração de
homens continua a mesma da qual disse o senhor: “São semelhantes aos meninos
que estão assentados no terreiro, e que falam uns para os outros e dizem:
nós temos cantado ao som da gaita, para
vos divertir, e vós não bailastes; temos
cantado em ar de lamentação, e vós não chorastes.”
João, ontem foi a
noite de véspera de teu dia. O povo
bailava ao som das gaitas. Não bailei nem chorei. Estive em Boa Vista, Afogados,Areias, Tigipió, na
estrada de Jaboatão. E estive em Campo Grande e Beberibe. E estive,por que não
dizer¿ na zona noturna da ilha do Recife. E tem em toda a parte o povo que te
festejava.
Às vezes chovia
furiosamente, às vezes a lua brilhava. E às vezes o céu ficava parado e fechado,
sem luz e sem chuva. Mas na terra humilde
a noite era a mesma. As casinhas, à margem das ruas esburacadas, estavam
alumiadas por lanternas. É um efeito triste, colorido, de uma lu pobre. Nas
janelas e nas portas se penduravam as
estrelas. Estrelas gordas de papel de cor, com uma luz fraca por dentro. Esses
balões estrelados, cativos da parede, forneciam imagens nas ruas tão escuras. As estrelas do céu, por exemplo,
haviam descido para a terra, para perto da lama, para as casinhas baixas. E teu
retrato, segurando o menino Jesus, estava colado nelas.
Pelos quintais
enlameados, as fogueiras ardiam. Firmadas por quatro estacas, com folhas de
cana, bananeiras-meninas enterradas em volta, as fogueiras enfeitadas de espaço
a espaço ensanguentavam a noite preta. Elas haviam brotado nos oitões, nos
mangues, nos pomares, junto das pontes, ao longo das ruas, pelos fundos dos
matos, como flores de fogo na noite preta.
E os fogos pipocavam.
O Recife, João, todos já sabem que é um prato raso. A água é quase irmã da
terra, beijando a flor das ruas, e as pontes quase se apoiam na massa líquida,
e, pra ver a cidade, é preciso andar toda a cidade...
Os fogos pipocavam
noite adentro. Uns tinham estalos secos intermitentes, esparsos; outros
rebentavam roucos; outros chiavam; outros crepitavam; outros eram urros de
pólvora. Eu não estava no meio da noite, eu estava no centro de muitas noites.
E muitas noites antigas avançavam, negras sobre mim, e eu as reconhecia,
pensamente. Estava deitado na trincheira, fazia três abaixo de zero. Os fuzis
inimigos amorosamente derrubavam folhas sobre mim, as balas passavam com uns
silvos finos e iam morrer no fundo do mato. Eu bebera cachaça, estava deitado
na terra fria da trincheira e, pelas montanhas enormes, pelos buracos dos vales
fundos, as metralhadoras crepitavam, crepitavam.
João,eu as conhecia
pelo sotaque; eram todas estrangeiras. Aquela do oeste era Hotchkiss pesada, a
que estava embaixo era Colt, uma cacarejando em nossa frente era Zebê, e
centenas de máquinas cuspiam fogo. Agora, sobre o meu crânio, assobiavam apenas
fuzis Mauser dos caadores de trincheiras, e longe, do outro lado da linha, do
outro lado da noite, roncou um Schneider. Nas primeiras noites, João, eu não
podia dormir, e as granadas, quando rebentavam a cinquenta metros, rebentavam
dentro do meu peito. Agora eu desistira de ter qualquer medo, e o metralhar
imenso me dava sono. Eu apenas temia morrer não tendo nome nenhum de mulher
para dizer as palavras do fim. Eu voava nos caminhões de munição, acossados
pela metralha nas estradas, sobre o abismo, nas curvas onde as balas furavam as
carrocerias, a toda a velocidade, de faróis apagados na noite escura,
sacolejando e roncando terrivelmente. Mas para mim não era mais uma noite perigosa: era apenas uma
grande noite triste. Eu não queria matar ninguém, não me importava se alguém me
matasse, e dois sargentos me olhavam com ódio, murmurando que eu era um
espião.Eu era um espião, João, João: eu era um espião da vida, no meio da
morte.
Eu ainda não tinha vinte anos, não tinha mais nenhum deus para me
entender depois da morte, não tomava banho há um mês, estava sujo e magro, meu
lápis de repórter quebrou a ponta. Havia nesse mesmo crepitar de fogos pela
vasta noite, e, junto dos acantonamentos, as fogueiras se acendiam para os
soldados gelados. Meu papel de repórter estava sujo da terra das trincheiras,
eu já não escrevia nada. A guerra era demasiado estúpida para não me fazer
sorrir, eu não reconhecia aliados nem inimigos; apenas via homens pobres se
matando para bem dos homens ricos; apenas via o Brasil se matando com armas
estrangeiras. No fim, João, eu berrei contra os comerciantes da paz que haviam
sido comerciantes da guerra, e , entretanto, eu não conhecia o mecanismo das
carnificinas; e me chamaram cínico, quando somei os contos de réis que custava
a morte de um soldado e disse que tal morte era muitas vezes mais cara que um
naufrágio de primeira classe no
Principessa Mafalda, só contando munição gasta.
Eu não era cínico, João, eu, pelo menos, jamais fui cínico do cinismo
dos cães de luxo; eu sempre tive o
direito de ter cinismo puro dos vira-latas, sem casa nem dono.
João, eu não tenho
mais dezenove anos, estou na rua e não na trincheira, mas esses estampidos na
noite transformam a noite. João, alguém canta, moças cantam nos bailes dos
palanques, entre canjiquinhas, milho verde, folhas, flores, fogueiras,abraços,
olhares, amores, e outras noites me cercam. Eu tinha treze anos e naquela noite
ela subitamente me amou. Me amou talvez um minuto, sentiu uma ternura e me deu
aquele lenço de seus cabelos. Era um lenço grande, de flores encarnadas e azuis,
e aquela chita estava sempre em volta de sua garganta ou amarrada em seus
cabelos. Eu dormi na praia e o lenço tinha um cheiro terno e quente de cabelos
castanhos, e aquele cheiro me entontecia e nunca em noite nenhuma amei nem
amarei mais amada com amor assim. João, naquela noite também havia cantos, e o
vento do sudoeste no ar escuro tinha o mesmo cheiro.
João, são muitas
noites antigas que me prendem no meio desta noite. Pobres s noites sob lâmpadas
da redação, mesquinhas as noites de trabalho insincero, tristes noites sem
ternura noturna.
João, o povo, na
noite imensa, festeja a ti. Há fogueiras e amores e bebedeiras, mas eu não irei
a festa nenhuma. Amanhã, João, esse povo continuará na vida. Por que o distrais
assim com teus fogos, João? Amanhã, os pobres estarão mais pobres e os ricos os esmagarão, e muitos homens iro clamar nas
cadeias, como tu clamavas. João, amanhã outra vez a miséria dos donos da vida
continuará deturpando a beleza da vida; as moças suburbana irão perder a beleza
no trabalho escravo. As crianças continuarão a crescer, magras e ignorantes; o
suor dos homens será explorado. João, João, inútil João; o povo está gemendo,
as metralhadoras viram para os peitos populares. Ninguém dividiu as túnicas,
nem pães, como tu mandaste, João, inútil João.
Notas da blogueira:
Rubem Braga foi correspondente de guerra junto à FEB na Itália, daí a mistura (brilhante) que o autor faz da festa junina e a trincheira de guerra.
Principessa Mafalda -Transatlântico italiano que naufragou em 25.10.1927
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.