Pode haver
futebol sem as Balas Futebol? Dada a gravidade da questão, vai-se repetir a
pergunta: "Pode haver futebol sem as Balas Futebol?". A resposta, por
mais frustrante, é que sim, pode. Com mágoa e tristeza, reconheça-se que pode.
O mundo é cruel o suficiente para permitir que o futebol prossiga sua carreira
vitoriosa, mesmo sem as Balas Futebol.
Mas algo se perdeu no meio do caminho.
Algo do encanto se quebrou.
Esclareça-se
ao leitor desavisado o que eram as Balas Futebol. Eram balas que traziam, junto,
figurinhas com as estampas dos craques dos diferentes times. Adquiria-se um
álbum e ia-se colando nele as figurinhas.
Talvez as gloriosas Balas Futebol não
tenham sido as únicas do gênero. Álbuns com o mesmo espírito, de iniciativa de
outros valentes empreendedores, terão existido. Importante a ressaltar é o
papel que, tanto no futebol como na vida em geral, desempenhavam tais álbuns.
Eles faziam parte da educação sentimental dos meninos.
O futebol de
hoje, sob o puro aspecto quantitativo, deixa o de ontem longe. É acompanhado
por multidões incalculáveis. Tem a televisão a seu serviço, essa máquina de
criar fenômenos avassaladores. Movimenta interesses e quantias estratosféricas.
Até no Japão e na Coréia – quem imaginaria? – é popular.
Uma Copa do Mundo, nos
dias que correm, é evento planetário como nenhum outro. Já sob o ponto de vista
da qualidade da relação com o torcedor, o futebol atual perde. Havia um vínculo
afetivo entre o craque e o clube, o craque e o torcedor e o torcedor e o clube,
que foi comprometido. Atentemos, para ter idéia precisa do que se está tentando
dizer, em duas diferenças fundamentais entre o futebol de ontem e o de hoje.
A primeira
diz respeito ao uniforme. Antes, os times apresentavam-se sempre com o mesmo.
Vá lá: não era sempre, era quase sempre. Havia ocasiões – uma em cada dez, não
mais que isso – em que era preciso trocar de uniforme, pois o do adversário era
parecido. Trocava-se então pelo uniforme reserva, que por sua vez era sempre o
mesmo, o único e mesmo uniforme reserva.
Hoje, o que acontece? O mesmo time
pode aparecer com a camisa branca num jogo, listrada no seguinte, cinza no
terceiro jogo e com bolinhas e rendas no quarto, isso quando o time alvinegro
não se traveste de vermelho, o rubro-negro de verde e o tricolor de um único e
inteiriço amarelo. Vale tudo, em favor do contraste que a televisão julgar mais
conveniente para a transmissão.
A segunda
diferença é que os times, antes, permaneciam com as mesmas escalações por anos
a fio. Podia haver uma modificação pontual aqui e ali, mas no geral, na base,
no núcleo duro, a escalação permanecia a mesma. Pode o jovem leitor imaginar
uma coisa dessas? Era um tempo de estabilidade e permanência. Os craques
ficavam longamente, muitas vezes a vida inteira, nos mesmos clubes.
Em conseqüência,
acabavam se identificando com eles. Não se precisa ir muito longe: isso
acontecia ainda nos anos 80. Zico era do Flamengo.
Zico era o Flamengo.
Roberto Dinamite era do Vasco.
Um pouco mais para trás, Ademir da Guia, chamado
o Divino, a quem João Cabral de Melo Neto dedicou um poema que lhe descrevia o
estilo melhor do que qualquer comentarista esportivo ("Ademir impõe com
seu jogo / o ritmo de chumbo (e o peso) / da lesma, da câmara lenta, / do homem
dentro do pesadelo"), era do Palmeiras. Era o Palmeiras.
E Pelé naturalmente era do Santos, assim
como Garrincha era do Botafogo, apesar das peregrinações por outros clubes
impostas pelas humilhações de fim de carreira.
Hoje, o que
se vê? Tomem-se os craques da seleção, os Edilsons e Luizões da vida. Em que
time jogam? Mais adequado seria perguntar: em que time estão jogando neste
momento, 3 da tarde? E em qual estarão às 4? Se há tanta inconstância, não há
como firmar vínculo com os clubes. Portanto, não há como firmar vínculo com o
torcedor. Como resultado, eis-nos introduzidos a um futebol sem heróis. Ademir
da Guia tem uma estátua na sede do Palmeiras. Já Romário, quem o homenageará?
Nestes últimos anos, ele jogou no Vasco e em seu contrário, o Flamengo. Tanto
para os torcedores de um clube como do outro, ele é em parte herói e em parte
traidor.
Neste ponto nos reencontramos com as Balas Futebol. Se ainda pode haver
futebol – e como pode –, o fato é que não pode haver mais Balas Futebol. O
álbum de figurinhas depende de um mínimo de estabilidade nas escalações.
Ajuda-os, igualmente, a estabilidade dos uniformes. Para fazer um deles, hoje
em dia, só recorrendo a um sistema em que as figurinhas trariam apenas a cara
dos jogadores, e os álbuns viriam com cartelas de uniformes para recortar. Às
caras seriam juntados os diferentes uniformes, conforme os jogadores fossem
mudando de time, e conforme o mesmo time fosse mudando de uniforme. Seria um
jogo parecido com aquele em que as bonecas vêm com diferentes roupinhas para
recortar e vestir nelas. Ficaria mais para brincadeira de menina que de menino,
mas que outro jeito?
(Publicado originalmente na Revista Veja em Abril de 2002, antes, portanto da reforma ortográfica)
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