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Um Conto e Três Versões: A Moura-Torta (1)

Nunca havia ouvido falar desse conto, até que comecei a ler José Lins do Rego. por causa dele, pesquisei e aprendi que A Moura-Torta é um conto espanhol, com origem provável na época em que a Península Ibérica estava libertando-se da dominação árabe.  Com  o passar dos anos e mudança de lugar a conto foi adquirindo várias versões e formas narrativas.  O blog LivroErrante, traz, inicialmente, a versão  que me fez conhecer A Moura-Torta.   Segue abaixo a narrativa feita por Mãe Filipa do livro Água Mãe:

                                                                       “Foi um dia uma princesa muito bonita, que tinha os cabelos louros e os olhos azuis, tão louros os cabelos que pareciam de ouro de moeda, tão azuis os olhos como o azul do céu. Ia ela todos os dias se banhar na fonte de seu pai; Quando a menina saía de casa, os passarinhos da corte voavam atrás dela. Faziam nuvem no céu, para que o sol não doesse na sua cabeça e a princesa só pisava em flores cheirosas, só pisava em terras cobertas de rosas.
‘Lá vem a princesa minha senhora’, gritavam as moças correndo para ver, para beijar os pequenos pés da princesa  real. ‘Lá vem ela, formosa como um mimo de Deus Nosso Senhor. ’
E tudo cantava e todos ficavam contentes, vendo a filha do rei, que ia se banhar nas águas do rio. Mas havia uma mulher feia que morava na beira do rio, uma mulher muito escura, que tinha os olhos gázeos e a boca caída. Era grande, era triste, tudo o que era menino corria dela, com medo.
‘Lá vem a Moura-Torta’, gritavam, quando a mulher escura vinha lavar roupa à beira do rio. ‘ Lá vem ela’, e todos corriam com medo. A mulher feia maldizia os meninos e tinha raiva do mundo.
‘Este rio é meu’ gritava ela, ‘esta terra é minha. Quem vem lá, para bulir nas minhas coisas¿ quem vem lá, para tomar banho nas minhas águas, sujar o rio que é meu, pisar nas minhas flores¿
‘É a princesa, a filha do rei, a dona do mundo, a senhora dos campos, das terras e do mar.’

 
E quando a princesa passava, a Moura-Torta sorria, ia até  a beira do caminho e beijava os seus pés, e dizia:
‘Senhora minha princesa, como são lindos os vossos olhos, como são lindos os vossos cabelos, como são lindos os vossos pezinhos!’
E a princesa sorria e passava contente. As damas diziam: ‘princesa minha senhora, toma cuidado com a Moura-Torta.’ E a princesa sorria. O rio corria manso. As águas do rio eram da cor do céu, as damas cantavam para que todo o mundo soubesse que a princesa real se banhava, para que os homens cortassem caminho e se fossem para bem longe.
Aí, a princesa ouviu uma voz que era como uma música de igreja: ‘Quem é que canta assim, minha dama¿, perguntou ela.
‘Saiba vossa alteza que  á a  Moura-Torta quem está cantando.’
‘Aquela velha feia da beira da estrada¿’
‘Sim minha princesa.’
E a princesa escutava a Moura-Torta cantando.  Era uma cantiga tristonha, de coração infeliz.
‘Coitada da Moura-Torta’, dizia a princesa, ‘ela é feia demais.’
E parava para ouvir e ficava parada. Lá um dia, a princesa veio descendo para o banho. Vinha correndo pelo caminho, de tão contente. Estava tão bonita naquele dia, que, mal comparando parecia uma imagem de Nossa Senhora. Com os cabelos soltos, era mesmo bonita. O mundo cheirava, de tanta flor aberta, e quando ela foi chegando perto do rio, lá estava a Moura-Torta. A princesa parou para falar com ela.
‘Como é bonita a sua voz, minha boa velhinha. ’ E a Moura-Torta foi dizendo: ‘ tudo o que eu tenho é de vossa alteza real. Minha senhora: como são lindos os vossos cabelos!  Ah! Quem me dera eu pudesse pentear os vossos lindos cabelos, minha princesa real. ’
As damas ficaram com medo e foram dizendo: ‘Princesa, o sol queima as vossas faces e a água do rio está esquentando com o sol.’
E a Moura-Torta falava:
‘Quisera eu ser a vossa escrava, minha princesa. Quisera ser dona de tudo o que é da terra e do céu, para vos dar.’
E as damas com medo:
‘O sol queima as vossas faces, princesa, as águas do rio estão esquentando. ’
E a Moura-Torta falava: ‘Quisera pentear os vossos cabelos.’
‘São todos os seus desejos, minha velhinha¿’
‘São todos os meus desejos, minha real senhora.’
Aí, a princesa sentou-se à beira do rio  e a Moura-Torta, com um pente de ouro, começou a pentear os cabelos de ouro.
‘Os  vossos cabelos são macios como veludo e mais dourados do que uma moeda do reino.’
E alisava a sua cabeça. E a princesa sorria e as damas com medo gritando:
‘O sol está quente, minha princesa as águas do rio estão quentes. ’
E a Moura cantando e a Moura alisando. Aí, a Moura –Torta começou a passar a  mão pela cabeça real. Bem no meio da cabeça enfiou um alfinete comprido. E, de repente, viu-se a princesa virar uma rolinha e voar longe, para cima de um pé de pau que havia na ribanceira do rio. E a rolinha começou a cantar. E quando se viu foi a Moura-Torta se sumir num redemoinho de vento. As damas deram para chorar tão alto que chegou gente do palácio. A princesa tinha virado passarinho. Tinha se encantado a princesa real. O rei mandou gente correr o mundo, andar por todos os reinos da terra, para ver se aparecia um feiticeiro que tirasse aquele encanto. Não houve jeito. Só se ouvia, de manhã, na beira do rio,uma rolinha cantando uma cantiga tão triste que fazia a gente chorar. Era a princesa com o encanto da Moura-Torta. A rainha morreu de desgosto e o príncipe que era seu noivo vinha todas as manhãs, ouvir a rolinha cantando na beira do rio. E corriam os mensageiros à procura do feiticeiro para tirar o encanto da Moura-Torta. Lá um dia, numa casa de gente pobre, uns meninos brincavam no terreiro. E veio uma rolinha, tonta de sol e caiu no meio deles.
‘Ela está encadeada com a luz do sol’, dizia um.
‘Não, ninguém vai comer a bichinha’, disse uma menina loura de cabelos grandes como os da princesa.
A menina pegou a rolinha, e foi agradando a bichinha, passando-lhe a mão na cabeça. Aí sentiu o alfinete da Moura-Torta e puxou com força. E a princesa real apareceu no meio dos meninos pobres. E tudo o que era pequeno ali virou grande. A casa do pobre virou um palácio. E uma carruagem de rei, toda de ouro, com quatro cavalos brancos, parada, esperando pela princesa desencantada.
‘Rei meu senhor vos mandou chamar, minha princesa real’, disse o pajem. O príncipe vosso noivo já está na igreja à vossa espera. ’
E foi assim que acabou o encanto da Moura-Torta. “Houve festa no reino, durante dias e noites.”

In: Rego, José Lins, Água Mãe, Rio de Janeiro: Ed.José Olímpio 2012, págs. 41- 44. 

Leia também: 
A  Moura Torta (2) 
A Moura Torta (3)
 

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