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Um conto e três versões: A Moura-Torta (3)


Era uma vez um rei chamado Massad, que governava um país extenso e cheio de fartura. Esse rei tinha apenas um filho, cha­mado Anuar, um príncipe virtuoso e de bom coração.
Quando Massad morreu, Anuar o suce­deu no trono, governando, desde o início, com sabedoria e justiça. E o povo, que já o estimava sinceramente, passou a amá-lo e respeitá-lo ainda mais.
Um único problema, entretanto, afligia Anuar: passado o período de um ano, que se guardava como luto pela morte do rei ante­rior, as leis do país exigiam que o novo rei se casasse tantas vezes quantas fossem ne­cessárias, até que tivesse um filho para ser o futuro soberano. Mas Anuar não gostava de nenhuma mulher, nem acreditava que pudes­se amar uma pessoa.
Os conselheiros da coroa, com medo de que Anuar perdesse o trono, começaram a procurar-lhe pretendentes entre as princesas de outros países. Viviam a enaltecer a beleza e as virtudes dessas moças, mas o rei nem sequer ouvia as descrições que eles faziam.


Anuar tinha o hábito de todos os dias pas­sear incógnito pelas terras do reino, para poder conversar com os súditos e saber quais eram suas reais necessidades. Um dia, quan­do dava um de seus passeios habituais, che­gou às margens de um rio, onde avistou, sen­tada à sombra de uma árvore frondosa, uma jovem de radiante formosura.
      Ao vê-la, o coração de Anuar começou a bater mais forte, e ele imediatamente descobriu que, pela primeira vez na vida, estava apaixonado. Tentando disfarçar a emoção, dirigiu-se à jovem e, depois de revelar sua Verdadeira identidade, pediu-a em casamen­to. O rosto da moça, que estava melancólico se abriu num sorriso. Afinal, ela tinha se sen­tado ali justamente para pensar no amor que sentia pelo rei e que julgava nunca poder ser correspondido. Assim, aceitou o pedido sem pensar duas vezes.
A futura rainha, entretanto, deveria ser apresentada à corte condignamente vestida e acompanhada por um cortejo cheio de pompa. Assim, Anuar pediu à noiva que subisse na árvore e se escondesse entre os galhos, en­quanto ele iria até a cidade para providenciar tudo. Recomendou-lhe que não falasse com ninguém nem desse sinal de vida durante sua ausência, pois tinha receio de que a roubas­sem.

A moça atendeu prontamente ao pedido e subiu na árvore para esperar o noivo. Algum tempo depois, viu se aproximar uma escrava muito feia, conhecida como a Moura Torta, que vinha buscar água para os patrões. Tinha as pernas tortas e caminhava com dificulda­de, carregando um pote de barro sobre a cabeça.
Cansada, a Moura Torta sentou-se bem no lugar onde a jovem tinha sido encontrada pelo rei, e começou a pensar na vida.
Obedecendo aos conselhos do rei, a jovem não fez nenhum ruído para que a escrava não desse pela sua presença. Entretanto, quando a Moura Torta se curvou sobre o rio para encher o pote, viu refletida nas águas tran­quilas a imagem formosa da noiva do rei. E, como não sabia que a moça estava ali, achou que aquela imagem fosse a sua própria.
— Que desaforo! — disse ela, então. — Uma moça tão linda como eu fazendo um tra­balho pesado desse jeito!
E, num acesso de raiva, jogou o pote de barro no chão, fazendo-o em mil pedaços. Depois foi-se embora.
A jovem, do alto da árvore, precisou segurar o riso para não ser descoberta.
Ao chegar em casa, a Moura Torta disse aos patrões que havia levado um tombo e que­brado o pote de barro pelo caminho. Deram--lhe então um barril de madeira, que não se quebrava tão facilmente, e a mandaram outra vez buscar água.
Mas, quando se abaixou para encher o barril, a escrava viu novamente a imagem da linda moça refletida na água. Acreditando de novo que aquela era a sua própria imagem, exclamou com raiva:
— Isso não pode ser! Uma jovem deslum­brante como eu servindo de escrava para os outros!
E, louca de ódio, jogou o barril contra as pedras, espatifando-o.
Desta vez, a noiva do rei teve mais difi­culdade em segurar o riso, e precisou colo­car um lenço junto à boca para não explodir numa gargalhada.
Mais uma vez a Moura Torta voltou para casa e mentiu aos patrões, dizendo que havia escorregado de novo e que o barril havia se espatifado no chão. Deram-lhe então um cal­deirão de ferro e a mandaram buscar água.
Dali a pouco ela chegava ao rio e se de­bruçava sobre as águas para encher o cal­deirão. Mas lá estava novamente a bela ima­gem refletida, e a escrava, sem se conter, gritou:
— Não, não e não! Decididamente sou bela demais para fazer este trabalho!
E, tomada de um acesso de fúria, come­çou a atirar o caldeirão contra as pedras que havia na margem do rio, tentando quebrá-lo. Como não conseguia, foi ficando cada vez mais irritada, aumentando sua feiúra com caretas e gestos desesperados. Até que a jo­vem, que a tudo assistia, não resistiu mais e soltou uma gostosa gargalhada.
A Moura Torta, assustada, olhou então para o alto da árvore e avistou a noiva do rei.
— Ah, então é você, sua malandra! — ela gritou. — É você quem está fazendo com que eu quebre minhas vasilhas?!
      E, para susto da moça, começou a subir na árvore. Mas, chegando ao galho onde estava sentada, não lhe fez nada. Falou de sua vida, da tristeza de ser escrava, até con­seguir conquistar-lhe a simpatia. Depois, co­meçou a afagar-lhe os cabelos, elogiando-lhe a beleza. Quando a moça estava distraída, a Moura Torta, que entendia de bruxarias, ti­rou do bolso um alfinete encantado e, sem que a jovem percebesse, espetou-lhe com força na cabeça. Imediatamente a linda noiva do rei se transformou numa pombinha, que saiu voando dali.
Horas depois o rei chegava, acompanha­do por numeroso cortejo, com soldados, cria­dos e todos os nobres da corte. Na frente, vinha uma banda de música para abrir pas­sagem. O reino estava em festa com a notí­cia de que o rei iria se casar.
Qual não foi a decepção de Anuar, po­rém, ao encontrar, em vez da belíssima jo­vem que havia escolhido para esposa, a es­crava feia e de pernas tortas a esperá-lo na copa da árvore!
       —   Mas o que aconteceu? — ele pergun­tou, surpreso.
—   Oh, Majestade! — disse a Moura Tor­ta. — Foram tantas horas de espera, debaixo de sol e de vento, que minha pele sensível não resistiu!
Anuar ficou completamente desorientado com aquilo, mas não suspeitou de nada. E, como já havia prometido casamento a moça e comunicado ao reino todo sua decisão, não podia voltar atrás. Assim, prosseguiu com a festa e casou-se com aquela mulher horro­rosa.
Um dia depois do casamento, quando o jardineiro do palácio começou a trabalhar, viu pousar numa planta uma linda pombinha, que começou a cantar:Ó bondoso jardineiro, se não se importa, me diga como passa o rei com sua Moura Torta!E o jardineiro respondeu:
Come bem e passa bem, passa vida regalada, tão serena e sossegada, como no mundo ninguém!A pombinha, tristemente, cantou: Ai, pobres de nós, pombinhas, que só comemos pedrinhas!E depois saiu voando, desaparecendo do jardim. O jardineiro, espantado, foi corren­do comunicar ao rei o que acabava de ver e ouvir. Curioso, Anuar lhe ordenou que ten­tasse agarrar aquela ave fantástica de qual­quer forma.
No dia seguinte, à mesma hora, lá estava de novo a pombinha, pousada na mesma plan­ta, cantando:O bondoso jardineiro, se não se importa, me diga como passa o rei com sua Moura Torta!
     E o jardineiro novamente respondeu: 
     Come bem e passa bem, passa vida regalada, tão serena e sossegada, como no mundo ninguém!E a pombinha tornou a cantar:Ai, pobres de nós, pombínhas, que só comemos pedrinhas!Mas desta vez, antes que ela se fosse, o jardineiro ofereceu-lhe um laço de barbante, dizendo:
—   Ponha o pé aqui, linda pombinha!
—   Não — ela respondeu. — Meus pés não foram feitos para laços de barbante!
E depois voou, desaparecendo ao longe.
Novamente o jardineiro correu para con­tar ao rei tudo o que havia visto e ouvido. Anuar, cada vez mais intrigado, ordenou-lhe que oferecesse à pombinha um laço de prata.
No dia seguinte, ela voltou a aparecer no jardim e, depois de fazer a pergunta de sem­pre e de receber a mesma resposta do jardineiro, este ofereceu-lhe o laço de prata. Mas a pombinha novamente recusou, dizendo que aquilo era muito pouco para ela.
No quarto dia, o rei mandou oferecer-lhe um laço de ouro, que também foi recusado. Só no quinto dia, quando lhe foi oferecido um laço magnífico, todo cravejado de pérolas e diamantes, foi que a pombinha aceitou que lhe prendessem o pé.
O jardineiro a levou então à presença de Anuar, que ficou encantado com a delicadeza da ave e ainda mais porque ela podia real­mente falar.
Prepararam-lhe então uma gaiola deslum­brante e a colocaram na sala do trono, onde todos os dias o rei passava horas e horas a admirá-la e a alisar-lhe as penas.
Um dia, quando Anuar estava mais uma vez agradando sua avezinha, começou a afa­gar-lhe delicadamente a cabeça até que, de repente, passou os dedos pelo alfinete que ali estava espetado.
— Pobrezinha! — disse ele, ao ver do que se tratava. — Quem pôde lhe fazer tamanha maldade?
E, penalizado, segurou-a com carinho, ti­rando, com muita paciência, o alfinete da delicada cabecinha. No mesmo instante, viu surgir à sua frente a linda jovem que havia encontrado às margens do rio.
A moça contou-lhe então tudo o que havia acontecido naquele dia, enquanto esperava por ele sentada nos galhos da árvore. E Anuar descobriu, horrorizado, que estava casado com uma feiticeira má e invejosa. Anulou o casamento e, em seguida, casou-se com a linda jovem.
Para a Moura Torta, reservou um casti­go impiedoso: mandou que a prendessem em um barril cheio de canivetes espetados, de fora para dentro, com as lâminas abertas. Depois, que a jogassem montanha abaixo,  para que rolasse pela ladeira. A Moura Torta já não vivia quando chegou ao pé da monta­nha.  Estava toda estraçalhada.
O rei Anuar e a esposa viveram anos e anos, sempre rodeados de felicidade.

In: Histórias da Carochinha, Ed.Ática
Acessível em: http://www.consciencia.org/a-moura-torta-contos-de-fada-infantis

Leia as versões anteriores que estão  disponíveis aqui e aqui

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