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Patrício,Jaime Hipólito

     O ar de agosto estava quente e nenhum vento soprava. Não se mexiam as folhas das árvores e o sol queimava como fogo a terra seca. No quarto, Patrício respirava ainda, mas Honorata sabe que ele já não terá muitas horas de vida.
     Estava lá, estirado numa rede, o corpo já quase sem mobilidade e pálido como chumbo. Patrício sentia que os músculos das pernas começavam a ficar rígidos e havia uma dormência subindo das mãos para os ombros. Uma agonia geral mordia-o por dentro e o impacientava. seria um alívio se pudesse arrancar-se dalí e ganhar as serras, e de lá jogar-se sobre os abismos, ou, alcançando o rio, nele tirar-se como uma pedra.
     Mas Patrício não tem nenhum ânimo e sente-se aniquilado. Tenta mudar a posição do corpo, já não consegue. E está só, no quarto. Sabe que Honorata está lá fora, mas não chamará por ela. Fora grosseiro quando recusou tomar o remédio e agora é ter coragem para enfrentar o pior. "Ainda sou homem", tenta dizer. Engasga-se. Na verdade, gostaria  de gritar por Honorata. Que também sofre, lá dentro.
     Honorata lembra-se de que Patrício quis ser sempre um menino sem juízo. Criara-o para não ver um inocente morrer à míngua, sem uma mãe. Mas juízo de gente, quem que o viu jamais querer ter? Sempre escolheu ser um menino ruim. Um malino. Tinha que acabar se trocando por uma cabrocha, que miséria. ainda ontem não foi ela que passou ali pela frente, sacudindo-se, arrotando felicidade? E já sabia de tudo. Da desgraça por caua dela. como se gostar daquilo? Morreu por quem?
     Honorata não esquece que Patrício era um meninozinho enjeitado. Não tinha ninguém por ele no mundo. Cresceu montado em lombo de jumento. Filho sem pai, sem uma voz grossa em cima, aí Patrício tinha que chegar a isso. Honorata lembra-se de que ele não tinha ainda doze anos, fugiu pela primeira vez de casa. Anoiteceu, não amanheceu. Com Jesuino, homem barbado, largou-se para a cidade. Dois dias passou sem aparecer, o safado. Outro teria pedido para ir. Patrício bem que desde cedo quis mostrar quem era. Para o que nasceu. Agora está alí, se acabando por uma cabrocha. Pior para ele. Ninguém o salvará, Honorata sabe. Não há médico. Nem tem quem corra à cidade atrás de um. Está certa de que Patrício morrerá. Por gosto, mas dói. Foi a vida inteira um moleque cabeçudo, sempre quis ser ruim, não quis nunca dar para gente, aí, mas é duro ver um vivente morrer. E Honorata sofre.
     O sol já se põe, escurecendo a fazenda. Em volta é como se o mundo fosse se fechando. Tornando-se  irrespirável. Honorata tem certeza de que tem a consciência limpa. Deus é testemunha. Filho enjeitado é que é um caso sério. Um fardo que a gente carrega.
     Agora já é noite. A luz do candeeiro clareia muito mal a casa. Honorata não sabe o que fazer. Não aparece um vizinho, que todos moram longe, Honorata vai ao quarto de Patrício. Volta. Vai novamente. Nota-o com feições endurecidas, os olhos sonolentos, quebrados. Faz uma última tentativa para obrigá-lo a tomar um pouco de leite. O coração de Honorata é um peso dentro do peito.
     Patrício fita-a. Ela  se aproxima mais. Vem-lhe  à memória o dia em que o trouxe da cidade. A mãe legítima jamais poderia criá-lo de modo decente. Coitada. Depois Patrício veio crescendo. Com três anos era muito mimoso, moreninho claro de cabelinhos  ruivos e os olhinhos como duas quixabas. Sabia dizer todas as palavras. Sabia tudo.
     Honorata vê que já é bem tarde da noite. Quando Juca, o marido, morreu, não fazia esse silêncio. Morreu no mesmo quarto onde agora está Patrício. A diferença é que havia gente em volta. Juca tinha amigos na redondeza, e eles vieram. Agora, ninguém aparece. Não há uma mão que ajude. Ao menos uma voz para quebrar o silêncio. Tinha que acontecer essa miséria. Morresse de tudo, Patrício. De tifo, como o pai. Uma cobra o picasse. Mas nunca se matasse por gosto. Isso nunca, por Deus.
     Honorata se debruça toda sobre a rede de Patrício. Verifica que ele já não se mexe. Não bole com mais nada. Está frio e com olhos parados.
     Honorata chora com todas as forças.

IN:HIPÓLITO, Jaime,Estórias Gerais, série: Letras Potiguares,Ed.AS Editores, 2003.
Imagem: folha do exemplar.

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