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O Doido, Artur Azevedo

Não havia dúvida: o pobre Canuto estava completamente doido.
A princípio, foram uns acessos profundos de melancolia, um desejo de andar metido pelos cantos, com a cara para o lado da parede. Como se o mundo não lhe importasse para mais nada, contemplando as unhas, sorrindo.
Vieram depois o monólogos, os longos monólogos incoerentes, em que ele não dizia coisa com coisa, até que um dia ficou furioso, quebrou pratos e garrafas, escangalhou um velho relógio d

         e armário e, descendo ao terreiro da fazenda, espancou um moleque, matou algumas galinhas, e espojou-se no chão, às gargalhadas!
A família fechou-se toda num quarto, aos gritos. Foram os pretos que subjugaram o doido e conseguiram metê-lo num pardieiro arruinado, que havia sido senzala noutro tempo, e amarrá-lo solidamente a uma viga.
Imagine-se a aflição do obre Miranda, o velho fazendeiro, com o filho doido – um filho querido, rapaz inteligentíssimo, que concluíra o terceiro ano de Direito em São Paulo e estava passando as férias na fazenda do pai.
E a mãe, aquela excelente senhora, carinhosa como todas as roceiras, ferida assim na fibra mais delicada do seu coração de mulher simples?
E as duas irmãs, uma das quais, a Maricas, era noiva do Meireles, um moço que tinha loja na vila, quatro léguas distante da fazenda¿
A fúria do mísero Canuto pôs tudo em rebuliço.
Depois de algemado e louco, Miranda, com a cabeça perdida, mandou que o pajem de mais confiança, o Miudinho, selasse o seu cavalo, também de mais confiança, o Furta-Moças, e fosse à vila a todo galope, chamar o médico.
Quando este veio, encontrou o doente prostrado entre duas pretas velhas que o benziam, resmungando rezas e fazendo bruxedos e feitiçarias. A grande crise passara.
O médico era um verdadeiro médico de roça.
-Homem, seu Miranda, confessou ele, não se trata da minha especialidade, é a primeira vez que na minha clínica aparece um caso de loucura. Eu podia receitar alguma coisa, mas creia, sem ter muita confiança no que fazia... Mande quanto antes o seu rapaz para o Rio de Janeiro, e meta-o no Hospício ou nalguma casa de saúde. O acesso pode voltar de um momento para outro, e talvez tenhamos que lamentar alguma desgraça. Com doidos não se brinca!
À tarde, apareceu na fazenda o Meireles, o lojista, o noivo de Maricas. O Miudinho, de passagem para a casa do médico, dera-lhe notícia do fato. O moço mostrava muita solicitude, muito interesse.
Era um rapaz de vinte e cinco anos, baixinho, de feições microscópicas e uns olhos, uns grandes olhos muito abertos que pareciam ocupar o rosto inteiro. Falava pelos cotovelos, desejoso de se mostrar entendido em todos os assuntos – e, agora, discutia casos de loucura e aprovava o conselho do médico.
- Mas quem o há de levar ao Rio de Janeiro? perguntou o fazendeiro.
- Eu! Disse logo muito depressa o Meireles. Deixe-o comigo.
O lojista cuidou desde logo de captar a confiança do doido, que tinha momentos perfeitamente lúcidos. Conversaram durante uma hora.
Canuto deixou-se convencer de que estava doente e devia dar um passeio à Capital Federal para tratar-se.
A mãe quis opor-se a essa viagem, as irmãs choraram muito e o velho Miranda sentiu-se fraquear entre aquelas explosões de lágrimas.
Mas era preciso levá-lo dali. Esse era o único meio de curá-lo, e evitar uma desgraça maior.
Dois dias depois, Canuto entrou no trem de ferro em companhia do seu futuro cunhado. Chegaram à noite à Capital Federal, depois de uma viagem sem incidentes, durante a qual  o doido apenas se mostrou taciturno. Ninguém perceberia o seu estado mental  se o Meireles, morto por dar à língua, não contasse aos outros passageiros a história do pobre moço.
Veio recebê-los na plataforma da estação um caixeiro do comendador Barbosa, correspondente do velho Miranda, que providenciara pelo correio e pelo telégrafo.
-Se quiser, disse o caixeiro ao Meireles, daqui mesmo pode seguir para a casa de saúde e lá deixar o doente. Está tudo preparado para recebê-lo.
E depois de indicar o estabelecimento, cujo diretor se achava prevenido, acrescentou:
- Basta dizer-lhe que vai da parte do comendador Barbosa.
O Meireles receou por instante que Canuto houvesse prestado atenção às palavras do caixeiro, e recusasse acompanhá-lo; mas o seu olhar de doido era tão inexpressivo, tão morto, que tais receios logo se desfizeram.
Efetivamente, quando o Meireles o convidou a entrar num carro estacionado na praça da República, o bacharel não fez a menor objeção, deixou-se levar.
Chegados que foram à casa de saúde, Canuto desceu do carro e embarafustou resolutamente pelo corredor, antes que o Meireles lhe dissesse uma palavra.
A primeira pessoa que o doido encontrou – numa sala onde se dirigiu – foi o próprio diretor do estabelecimento. Cumprimentou-o com muita amabilidade, e disse-lhe:
-Sr.doutor, trago a vossa senhoria o maluco de quem lhe falou o Sr.Comendador Barbosa.
E apontou para o Meireles, que por seu turno entrava na sala, com os grandes olhos exageradamente abertos.
-Bem! Já estou prevenido, disse o diretor.
-A mania dele, acrescentou Canuto ao ouvido do médico, é dizer que está no seu juízo, e que o doido sou eu. Aí fica o pobre rapaz aos cuidados de vossa senhoria.
Dizendo isto, disfarçou e saiu para a rua.
Bom, me amigo, disse o doutor, batendo carinhosamente no ombro de Meireles; vamos lá dentro. Vou dar-lhe um quartinho muito bom para descansar.
O Meireles sorriu:
- Perdão, doutor, eu não preciso descansar.
-Há de precisar, há de precisar; chegou de viagem, deve estar fatigado.
- Não, senhor, tanto que tenciono ir esta noite ao teatro; dormirei no hotel e voltarei para a roça amanhã, no trem da madrugada. Vim simplesmente entregar-lhe o doido de quem lhe falou o Comendador Barbosa.
- Pois sim, pois sim, deixe lá o doido... já sei, já sei... O senhor fica nesta casa alguns dias e depois volta para a fazenda de seu pai...
-Ora esta! Pelo que vejo, o doutor está me confundindo com o doido!
- Não, não estou, creia que não estou...Venha, venha comigo...
-Já lhe disse, doutor, que está enganado! Eu não sou doido. O doido é o outro!
E cada vez o Meireles arregalava mais aqueles olhos inverossímeis.
Depois de dizer, cheio de calma. – Bom!, é teimoso...
-O diretor calcou um botão elétrico
-Que faz?
-Vai ver.
Entraram dois enfermeiros, dois latagões musculosos.
- Leve este doente para o quarto número 7.
- Mas...
- Levem-no! Se protestar, metam-lhe a camisola-de-força.
Daí a cinco minutos, o Meireles estava no quarto e com a tal camisola, porque caiu na asneira de protestar.
Quatro dias passou o pobre diabo na casa de saúde, onde chegou a tomar três duchas geladas.
Foi preciso que o Canuto aparecesse na fazenda, e que o velho Miranda adivinhasse tudo e telegrafasse ao Comendador Barbosa, pedindo-lhe para desmanchar o engano.
Canuto está hoje completamente restabelecido  e formado: advoga, mas não serei eu quem lhe confie alguma causa.

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