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Mostrando postagens de julho, 2016

Sonho Gelado, Cizenando Cipriano

     A noite já dança sensualmente entre luas, olhares e esbarrões. Porto seguro, a mesa de bar é a casa do boêmio. Entre encontros originais, alegrias desdobradas e tristezas destiladas, nascemorrem   madrugadas e sonhos, enquanto sobrevive a ilusão. No copo úmido, a ideia vem lenta como o próximo gole:   por que não?   É a pergunta fatal. O vão entre o brilhantismo e a estupidez, dizem, é de 20 andares. Como só esteve em um dos lados da equação, ele não pode confirmar a tese. Reunido com os amigos, deixa-se levar pela possibilidade antes desejada, há pouco palpável e agora real: com a experiência de quem já transitou dos botequins mais vagabundos às franquias assépticas, tinham condições de abrir seu próprio bar. Nada mais perfeito do que fazer do prazer uma fonte de renda, não? E, ainda, após tantos golpes de água fria nos pés e ofertas de retirada das mais sutis às mais grosseiras, manteriam a porta de ferro levantada pelo tempo que desejassem – a sua política é que impera

A Casa, Mia Couto

Sei dos filhos pelo modo como ocupam a casa: uns buscam os recantos, outros existem à janela. A uns satisfaz uma sombra, a outros nem o mundo basta. Uns batem com a porta, outros hesitam como se não houvesse saída. Raras vezes sou pai. Sou sempre todos os meus filhos, sou a mão indecisa no fecho, sou a noite passada entre relógio e escuro. Em mim ecoa a voz que, à entrada, se anuncia: cheguei! E eu sorrio, de resposta: chegou? Mas se nunca ninguém partiu… E tanto em mim demoram as esperas que me fui trocando por soalho e me converti em sonolenta janela. Agora, eu mesmo sou a casa, casa infatigável casa a que meus filhos eternamente regressam.  - Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”.  Lisboa: Editorial Caminho, 2011. Imagem:www.asadoutrina.com.br

A Bandinha, Leonardo Schabbach

Era uma cidade de trabalho. Fria. Pausada. Irritadiça. Os moradores contavam os dias sem qualquer resistência, aceitavam pacificamente passar os anos em um mundo estressante e automatizado, numa existência sem adrenalina e sem cor. Viver, aparentemente, não era preciso. Mas as aparências enganam, como todos sabem. Por trás de cada clichê, há uma série de histórias que o sustenta. É assim que se tornam verdade – ou ao menos parte da cultura popular. Em um certo dia, Marcelo ligou para Renata, que ligou para Edu, que ligou para João, que ligou para Letícia. Estava formada a banda “Vitalícia”. Certo, rima desnecessária – pontos negativos para o narrador. Mas a banda, não. Esta era essencial. Para cada um de seus membros e, principalmente, para toda a cidade. E aqueles músicos tinham essa consciência. Precisavam tocar, alegremente, marchinhas felizes que pudessem animar o bairro. No primeiro dia, colocaram-se na rua, em uma praça, em frente a uma padaria, bem ao cair da noite. Era

Quando Chove, Frederico Barbosa

Em São Paulo, quando                         chove, chovem carros.                          Tudo para: pontes, viadutos, Marginais. E a água retoma seu curso original: Anhangabaú, Sumaré, Pacaembu.                          Ruas onde eram rios, ex-rios, caminhos de rato, canais. Rios sobre ruas, Avenida do Estado, Via Dutra, Radial. Em São Paulo, quando chove, chovem apocalipses de quintal. Imagem: Nelson Antoini www.noticias.r7.com

Doce Inferno, Eduardo Oliveira Freire

   Minha avó foi uma doceira de mão cheia. Arrumava a mesa de bolos, gelatinas e brigadeiros que ela própria fazia. Meu avô e eu ficávamos horas comendo as guloseimas, enquanto ela ficava a observar satisfeita.  Preferia comer sozinha, para olhar o neto e o marido.    Todo final de semana ia visitá-los. Era muito bom. Mas, com o tempo, descobri que atrás de tanta doçura há o amargo. Meus avós, no final de suas vidas, ficaram com graves problemas de saúde.    O tempo passou. Fiquei diabético, obeso e com problema de coração. Comer, dava-me prazer imediato e era isso que almejava sempre.    Morri e tive que ir ao inferno. Mas, não fui para o lugar dantesco, que todos dizem. Voltei à casa dos meus avós. Eles estavam me esperando. Voltei ao meu doce inferno. Ima gem: steffany

Praia do Porto, Paulo César Pinheiro

Na praia do porto amanheço. Praia do Porto, imagem: Museu do Una Na pedra do cais tomo assento. Na água salgada eu me benzo. No brilho do sol me oriento. Na orla deserta eu caminho. Na trilha de concha me enfeito. No espelho de prata mergulho. No pé da palmeira me deito. No vento do mar me penteio. No cheiro do sal me perfumo. Na rede de palha balanço. No azul do horizonte me aprumo. Na estrela da tarde te chamo. Na ponte de tábuas te vejo. Num vão de maré te contemplo. Na luz do luar te desejo. No branco da espuma te encontro. Na areia do chão te desenho. No ronco das ondas te encanto. No sangue da aurora te tenho. No corpo moreno eu me esvaio. Na arrebentação me energizo. Na vela do barco adormeço. No canto do mar me eternizo.

O Que Estamos Lendo?

Hibisco Roxo , Chimamanda Ngozi Adichie De: Regina Porto (PE) Está com:  Amanda (PB) . Vai para: Ana Carolina (RJ) Protagonista e narradora de Hibisco roxo, a adolescente Kambili mostra como a religiosidade extremamente “branca” e católica de seu pai, Eugene, famoso industrial nigeriano, inferniza e destrói lentamente a vida de toda a família. O pavor de Eugene às tradições primitivas do povo nigeriano é tamanho que ele chega a rejeitar o pai, contador de histórias encantador, e a irmã, professora universitária esclarecida, temendo o inferno. Mas, apesar de sua clara violência e opressão, Eugene é benfeitor dos pobres e, estranhamente, apoia o jornal mais progressista do país. Durante uma temporada na casa de sua tia, Kambili acaba se apaixonando por um padre que é obrigado a deixar a Nigéria, por falta de segurança e de perspectiva de futuro. Enquanto narra as aventuras e desventuras de Kambili e de sua família, o romance também apresenta um retrato contundente e original

Gato na Chuva, Ernest Hemingway

       Só havia dois americanos no hotel. Não sabiam nada das pessoas com as quais esbarravam pelas escadas, no trânsito diário de acesso ao quarto. O quarto ficava no segundo pavimento, virado para o mar. Ele dava também para o jardim público e o monumento de guerra. Havia grandes palmeiras e bancos verdes no tal jardim. Na boa estação aparecia sempre um artista com seu cavalete. Os artistas gostavam do porte das palmeiras e das cores brilhantes dos hotéis faceando o jardim e o mar. O monumento de guerra atraía os italianos, que vinham de longe para admirá-lo. Ele era feito de bronze e cintilava na chuva. Estava chovendo e a água escorria das folhas das palmeiras. Formavam-se poças nas trilhas de cascalho. O mar quebrava em linha a escorrer pela praia, para surgir,

Conversa Sobre Poesia Com o Fiscal de Rendas, Vladimir Maiakovski

Cidadão fiscal de rendas, desculpe a liberdade! Obrigado... não se incomode...  estou à vontade! A matéria que me traz é algo extraordinária: o lugar do poeta na sociedade proletária.. Ao lado dos donos de terras e senhores industriais estou eu também citado por débitos fiscais. Nós somos proletários e motores da pena. A poesia é como a lavra do rádio - um ano para cada grama. Para extrair uma palavra, milhões de toneladas de palavra-prima. Porém, que flama de uma tal palavra emana perto das brasas da palavra-bruta! Tal palavra põe em luta milhões de corações por milhares de anos. Você conhece por certo o fenômeno rima. Em linguagem de fisco a rima é uma letra a termo fixo para desconto ao fim da linha sem mais prazos. E sai-se à caça da minúcia de flexão ou sufixo na caixa escassa das conjugações e casos. Tenta-se pôr uma palavra nessa linha, ela não cabe, força-se, e se esfarinha. Cidadão fiscal de rendas, eu lhe juro, as palavras custam ao poeta um duro juro. Para nós, a