Nem tudo no ano escolar foi pichação de parede, pedra jogada na testa da polícia. Quem era de estudar estudou, fez pesquisa, juntou coisas para provar. Aí organiza-se uma exposição, mas que seja bem bacana. Sem ar de museu antigo, objetos falando, contando o esforço de aprender e transmitir, a alegre descoberta da natureza pela moçada.
A turma do científico¹ quer lá saber de apresentar só desenhos e fotos. Durante o ano, andou por Manguinhos e Butantã², trabalhou em laboratórios, adquiriu saber de experiências feito. Então vai mostrar os soros, as vacinas, os pequenos animais empalhados que documentam a praxis, como gosta de dizer um líder da turma.
- É pouco. A gente tem de trazer animais vivos, para demonstração na hora. Do contrário, vão pensar que não foi a gente que fez essa coisada toda aí.
-Claro. O negócio é partir para a vivissecção³ diante do pessoal da velha guarda.
Toca a procurar cobaia, mas parece que as cobaias, não estão participando do interesse pelas ciências experimentais, entraram em recesso neste verão. Cobaia adora ser tratada de porquinho-da-índia e viver em paz no jardim à beira d'água; mas se chama do cobaia, vê nesse nome conotações ingratas, e dá no pezinho.
Os rapazes procuraram em vão. Até que um se lembrou:
- Preá é a mesma coisa.
- Quem não tem cobaia caça com preá - concordaram, abusando da preposição.
E preá, por sorte, não foi difícil de arranjar. Um aluno que mora em Jacarepaguá comprou um, de um vendedor de bichos caçados, Deus sabe onde. Levou-o para casa, telefonou para a turma, decidiu-se que o preá seria a grande vedeta, por ocasião de visita do Governador.
- O ou a? No livro de Dona Flávia sobre mamíferos. Preá é feminina, como a sabiá do Chico(4).
- O gênero do substantivo não importa, importa é o sexo. É preá macho ou fêmea?
Era fêmea. E uma doçura de fêmea, no pelo, nos olhos, sobretudo nos olhos. A preá olhava para os rapazinhos, para a casa, para o mundo, com ar de quem acha tudo inofensivo e bom de existir. Era uma preá desejosa de acabar com o muro erguido entre os seres chamados racionais e os seres chamados irracionais, como se todos, preás e não preás, fossem da mesma e única família possível no mundo, uma infinita, solidária família.
- Afasta o diabo dessa diabinha pra lá - pediu um colega.
- Assim, como é que a ciência pode avançar?
- Eu não me deixo levar por olhinhos de preá - repeliu o futuro grande cirurgião de transplantes.
- Comigo é no interesse da humanidade. A preá está ótima, novinha, músculos tenros, a demonstração vai ser uma beleza.
- Diz-que a carne dela, nessa idade, é uma coisa.
- E você tem coragem de cozinhar e comer uma preá destinada ao serviço da ciência, bandido?
Se as opiniões se dividiam, a graça era uma só, e tão evidente que até Zerbini em potencial acabou reconhecendo que cortar um bichinho assim talvez não fosse o melhor número da exposição. Aqueles olhos...
- Rosados, você já viu uma tonalidades dessas?
- Rosados e luminosos.
- Luminosos e confiantes - descobriu a moça.
- Isso! Eles confiam na gente. Pessoal, não pode ser! - bradou o comprador da preá. E peremptório:
- Essa não passa pelo facão de jeito nenhum, e vai se chamar Andréia, como nossa coleguinha, que descobriu o segredo dos olhos dela.
Eis aí porque, ao visitar a exposição dos alunos do Colégio de Aplicação da Universidade da Guanabara(5), o governador Negrão de Lima não poderá apreciar a técnica dos jovens vivisseccionistas. Os olhos da preá venceram a parada contra a ciência.
(O Poder Ultra Jovem - Ed. José Olímpio 1974)
Notas do blog:
(1) - Manguinhos e Butantã - Clique para conhecer os dois maiores centros de estudos e pesquisas científicas do pais.
(2) - Três últimos anos escolares que antecediam o vestibular. Tinha aulas específicas para quem cursaria faculdade de ciências da saúde, exatas e humanas.
(3) - Vivissecção - operação feita em animais vivos,para estudo de certos fenômenos fisiológicos.
(4) - Refere-se à música "Sabiá" - "que eu hei de ouvir cantar uma sabiá "-
(5) - Estado da Guanabara existiu onde hoje é o território do município do Rio de Janeiro de 1960 até 1975
o prea é lindo e fofo tem gente que fala que È porquinho da india
ResponderExcluirÉ fofo mesmo. No RJ, talvez em SP também, é porquinho da índia realmente.
ResponderExcluirAbraço
Regina
Quem são os personagens
ResponderExcluirOlá, boa tarde. você poderia se identificar, por favor? Obrigada.
ExcluirFRANCISCO PAULO DA SILVA
ResponderExcluir11/08/1944 -
MEIO JOVENZINHO E CURIOSO.
GOSTARIA DE SABER O NOME DO AUTOR DO LIVRO DE PEDAGOGIA ""MEU TESOURO"", DÉCADA DE 50.
Sr. Francisco vou tentar descobrir, mas quero dar duas informações: a proposta do blog é mostrar textos de vários gêneros, épocas e autores e algumas vezes falar de livros. Não faço questão de ajudar, mas que fique claro não vou conseguir sempre. A segunda informação: para mensagens fora do contexto, o senhor pode se dirigir diretamente a mim em "fale conosco" - fica do lado direito da tela. Achei um livro do ano de 1958 com o título informado. Se for ela são duas autoras: Helena Lopes Abranches e Ester Pires Salgado. Agradeço a visita. Abraço
ExcluirSr. Francisco Paulo da Silva, segue o link de onde encontrei o livro:
ResponderExcluirhttps://radianterecreio.com.br/meu-tesouro-um-livro-raro-da-loja-ano-radiante/