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Olhos de Preá, Carlos Drummond de Andrade

     Nem tudo no ano escolar foi pichação de parede, pedra jogada na testa da polícia. Quem era de estudar estudou, fez pesquisa, juntou coisas para provar. Aí organiza-se uma exposição, mas que seja bem bacana. Sem ar de museu antigo, objetos falando, contando o esforço de aprender e transmitir, a alegre descoberta da natureza pela moçada.
     A turma do científico¹ quer lá saber de apresentar só desenhos e fotos. Durante o ano, andou por Manguinhos e Butantã², trabalhou em laboratórios, adquiriu saber de experiências feito. Então vai mostrar os soros, as vacinas, os pequenos animais empalhados que documentam a praxis, como gosta de dizer um líder da turma.

     - É pouco. A gente tem de trazer animais vivos, para demonstração na hora. Do contrário, vão pensar que não foi a gente que fez essa coisada toda aí.
     -Claro. O negócio é partir para a vivissecção³ diante do pessoal da velha guarda.
Toca a procurar cobaia, mas parece que as cobaias, não estão participando do interesse pelas ciências experimentais, entraram em recesso neste verão. Cobaia adora ser tratada de porquinho-da-índia e viver em paz no jardim à beira d'água; mas se chama do cobaia, vê nesse nome conotações ingratas, e dá no pezinho.
     Os rapazes procuraram em vão. Até que um se lembrou:
     - Preá é a mesma coisa.
     - Quem não tem cobaia caça com preá - concordaram, abusando da preposição.
     E preá, por sorte, não foi difícil de arranjar. Um aluno que mora em Jacarepaguá comprou um, de um vendedor de bichos caçados, Deus sabe onde. Levou-o para casa, telefonou para a turma, decidiu-se que o preá seria a grande vedeta, por ocasião de visita do Governador.
     - O ou a? No livro de Dona Flávia sobre mamíferos. Preá é feminina, como a sabiá do Chico(4).
     - O gênero do substantivo não importa, importa é o sexo. É preá macho ou fêmea?
     Era fêmea. E uma doçura de fêmea, no pelo, nos olhos, sobretudo nos olhos. A preá olhava para os rapazinhos, para a casa, para o mundo, com ar de quem acha tudo inofensivo e bom de existir. Era uma preá desejosa de acabar com o muro erguido entre os seres chamados racionais e os seres chamados irracionais, como se todos, preás e não preás, fossem da mesma e única família possível no mundo, uma infinita, solidária família.
     - Afasta o diabo dessa diabinha pra lá - pediu um colega.
     - Assim, como    é que a ciência pode avançar?
     - Eu não me deixo levar por olhinhos de preá - repeliu o futuro grande cirurgião de transplantes.
     - Comigo é no interesse da humanidade. A preá está ótima, novinha, músculos tenros, a demonstração vai ser uma beleza.
     - Diz-que a carne dela,   nessa idade, é uma coisa.
     - E você tem coragem de cozinhar e comer uma preá destinada ao serviço da ciência, bandido?
     Se as opiniões se dividiam, a graça era uma só, e tão evidente que até Zerbini em potencial acabou reconhecendo que cortar um bichinho assim talvez não fosse o melhor número da exposição. Aqueles olhos...
     - Rosados, você já viu uma tonalidades dessas?
     - Rosados e luminosos.
     - Luminosos e confiantes - descobriu a moça.
     - Isso! Eles confiam na gente. Pessoal, não pode ser! - bradou o comprador da preá. E peremptório:
     - Essa não passa pelo facão de jeito nenhum, e vai se chamar Andréia, como nossa coleguinha, que descobriu o segredo dos olhos dela.
     Eis aí porque, ao visitar a exposição dos alunos do Colégio de Aplicação da Universidade da Guanabara(5), o governador Negrão de Lima não poderá apreciar a técnica dos jovens vivisseccionistas. Os olhos da preá venceram a parada contra a ciência. 
(O Poder Ultra Jovem - Ed. José Olímpio 1974)

Notas do blog:
(1) - Manguinhos e Butantã - Clique para conhecer  os dois maiores centros de estudos e pesquisas científicas do pais.
(2) - Três últimos anos escolares que antecediam o vestibular. Tinha aulas específicas para quem cursaria faculdade de ciências da saúde, exatas e humanas.
(3) - Vivissecção - operação feita em animais vivos,para estudo de certos fenômenos fisiológicos.
(4) - Refere-se à música "Sabiá" - "que eu hei de ouvir cantar uma sabiá "-
(5) - Estado da Guanabara existiu onde hoje é o território do município do Rio de Janeiro de 1960 até 1975

Comentários

  1. o prea é lindo e fofo tem gente que fala que È porquinho da india

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  2. É fofo mesmo. No RJ, talvez em SP também, é porquinho da índia realmente.

    Abraço
    Regina

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  3. Respostas
    1. Olá, boa tarde. você poderia se identificar, por favor? Obrigada.

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  4. FRANCISCO PAULO DA SILVA
    11/08/1944 -
    MEIO JOVENZINHO E CURIOSO.
    GOSTARIA DE SABER O NOME DO AUTOR DO LIVRO DE PEDAGOGIA ""MEU TESOURO"", DÉCADA DE 50.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sr. Francisco vou tentar descobrir, mas quero dar duas informações: a proposta do blog é mostrar textos de vários gêneros, épocas e autores e algumas vezes falar de livros. Não faço questão de ajudar, mas que fique claro não vou conseguir sempre. A segunda informação: para mensagens fora do contexto, o senhor pode se dirigir diretamente a mim em "fale conosco" - fica do lado direito da tela. Achei um livro do ano de 1958 com o título informado. Se for ela são duas autoras: Helena Lopes Abranches e Ester Pires Salgado. Agradeço a visita. Abraço

      Excluir
  5. Sr. Francisco Paulo da Silva, segue o link de onde encontrei o livro:
    https://radianterecreio.com.br/meu-tesouro-um-livro-raro-da-loja-ano-radiante/

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