Se a nossa religião não declarasse ser isso uma superstição, eu acreditaria em dias aziagos. Realmente há certos dias em que o caiporismo nos persegue tanto, que parecem influenciados por alguma coisa oculta...
Assim dizia o Alberto a alguns amigos ao redor de uma mesinha de café, ali na rua S.José, junto ao Círculo Católico.
Ora, ora, disse Anísio. Você crê nessas coisas?
- Pois eu creio em dias aziagos: para mim, são todos, de Ano Bom a S.Silvestre, disse o F.B dando largas risadas à sua neurastenia pessimista.
- E você,Rômulo, que pensa a esse respeito?
- Eu? e sorriu com seu ar de beatitude sincera.
Eu não admito que um bom cristão não se conforme com a vontade de Deus. Sendo esse nosso dever sempre, não há dias aziagos: há dias de provações que devem ser aceitos com resignação, se não, com alegria... Porque às vezes o caiporismo, bem analisado, é cômico.
- Sim, não há dúvida, mas...
-Ora, Alberto, está você ansioso por nos contar alguma historieta de dia aziago...
- Historieta não, é a verdade. Vou contar-lhes o que sucedeu. Não me lembro mais que dia era, mas sim que ao levantar-me da cama, bem cedo, dei uma forte canelada num caixote, e vinha gemendo quando entrava a lavadeira, a velha Vicência.
- “Eh! Eh! Disse ela, tome sentido que hoje é dia aziago...” Não sei por quê, aquilo me impressionou: resolvi começar o dia ouvindo missa.
Boa idéia, disse Rômulo.
-Fui à Glória. Ao sair da igreja, vi à porta, uma senhora bem vestida, conversando com outra, e tendo na mão uma grande bolsa. Eu tinha visto pregado na parede, um aviso, que as esmolas nesse dia seriam para o Bom Pastor. Fui logo metendo a mão na bolsa de senhora meu níquel. Ela assustou-se com o movimento que fiz: recuou um pouco, receando que eu tivesse querido roubar-lhe alguma coisa, e ficou a olhar-me boquiaberta e com os olhos arregalados.
- Pus um níquel, disse eu, é esmola.
- Um níquel! E, abrindo a bolsa, lá o achou.
- Ora essa, seu brejeiro, pensa que sou alguma mendiga?
- Esmola para o Bom Pastor.
- Ah! E que tenho eu com o Bom Pastor? Já se viu impertinência igual?
Foi logo chegando muita gente a indagar... Eu já estava com medo que enchessem , quando,por felicidade, acudiu a senhora que estava esmolando para o Bom Pastor e recolheu o masinado níquel.
- Oh! Disse Cabral, essa é mesmo de quem anda no mundo da lua.
- Sim, sim, mas por que andam agora as senhoras com essas bolsas enormes? Mas, vamos adiante.
Saindo da Igreja, fui à estação da Estrada de Ferro tomar um trem de subúrbios. Precisava chegar cedo à casa de uma pessoa de quem esperava uma proteção num negócio que nisso dependia. Estava eu na entrada da estação quando chegava a multidão de passageiros dos subúrbios. Dirige-se a mim uma senhora, e, apontando para um bonde parado, perguntou-me com ar de provinciana recém-chegada.
- Isto é barca?
- Não, senhora, isto é bonde.
- Ora, quer mangar comigo ? Pergunto se... é... barca disse acentuando as palavras.
- Minha senhora, bem se vê que não conhece o Rio de Janeiro. Eu também sou de Minas, por que hei de caçoar da senhora¿ Isto não é barca: é bonde...
-E esta? Não seja malcriado... Pergunto qual destes que estão chegando é barca?
- Nenhum, minha senhora, são todos bondes, aqui não há barcas. As barcas são...
- Que desaforo! Pois eu não sei o que são bondes?
O senhor é muito atrevido querendo meter à bulha uma senhora séria. Sabe com quem está falando¿
E começou a levantar a voz fazendo afluir gente, e até um guarda civil. Este ia se dirigindo a mim, com ar ameaçador, ouvindo a senhora gritar e levantar o guarda chuva querendo me agredir. Com dificuldade consegui explicar que não tinha compreendido que a mulher queria saber qual era o bonde que ia às barcas.
-Então, você não entendeu logo o engano? disse o Anísio.
- Não, palavra. Se a mulher não tivesse parecido uma mineira simples, eu não teria querido prestar-lhe uma informação de puro obséquio.
-Mas a influência agourenta continuou. Tomei o trem e cheguei à casa da pessoa a quem eu fora recomendado, e que pouco conhecia. Ia, portanto, preparando a lábia para ser bem acolhido.
A casa tinha uma grande varanda: fui aí recebido por uma criada que levou o meu cartão ao patrão.
Eu sabia que a senhora estava muito doente e, por isso, não estranhei que ele não viesse logo.
Pus-me a passear no jardim.
Ao cabo de uma meia hora, entrou pelo portão um carregador trazendo caixão de defunto que colocou na varanda...
-E esta! Disse eu aos meus botões. Cheguei em mau dia... Defunto em casa!...
-entrei de novo na varanda para tomar o chapéu, disposto a partir, quando abriu-se a porta e apareceu o dono da casa, aconchegando ao pescoço a gola do paletó desabotoado: perguntou-me o que desejava.
-Desculpe, disse eu, virei outro dia...
- Por que não hoje?
-Estou vendo que há incômodo grave em casa e...
Olhando eu o caixão, o homem também se voltou e deu com vista nele...Ficou aterrado!
-Que é isto¿ meu Deus! Quem trouxe isto aqui?
Que horror! E minha mulher passando tão mal! Que agouro... Oh! Senhor, que história é esta¿
E, tremendo, aproximou-se do caixão. Leu a nota que vinha pregada, e pôs-se a gritar.
-Ó Sebastião, ó Miquelina, corram todos. Vá o senhor também, por favor, chamar o carregador. Não é para aqui. O número 60 antigo é no fim da rua. Ora, valha-me Deus!
Saí correndo, mas achando o carregador, tratei de tomar o trem e voltar para a cidade.
-Realmente, disse Plácido, foi muito caiporismo!
Muito¿ disse Alberto, pois ainda houve mais. Eram 11 horas, dirigi-me à repartição na qual eu era supranumeráro. Lá chegando, soube que tinha sido dispensado por falta de verba...
Vocabulário desta crônica:
Caiporismo – s.m.: azar, má sorte
Neurastenia – s.f.: mau humor,irritabilidade, neurose.
Beatitude – s.f.: felicidade, tranqüilidade.
Brejeiro - adj.: vadio, malicioso
Impertinência - s.f. atrevimento.
Encher- v. amolar, chatear.
Malsinado- adj. De mau agouro, que teve mau destino
Provinciano – adj. Que é do interior
Mangar- v.t.: zombar
Meter à bulha- colocar em má situação, em maus panos, em confusão.
Afluir –v.t.: ajuntar,chegar,aglomerar.
Agourento adj.: de mau agouro, que traz má sorte.
Aterrado – aterrorizado, cheio de terror.
Supranumerário – adj. Que está a mais.
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