Com vontade de correr para adiantar o tempo, a menina chega à festa com o coração na mão, a mãe de um lado e a ir mãzinha do outro. Finos braceletes dourados ornam seus bra ços inocentes. No cabelo ondulado, fitas de cetim multicolori das. Justo ela que adora moda e vive às voltas com as revistas da tia e as costuras da avó tem de usar um vestido emprestado da prima. Por isso, dias antes, a roupa ganhou atenção especial ao ser lavada com sabonete na pia do banheiro e passada a ferro com esmero nunca visto antes na casa. Para a quadriha, fora os lacos de cetim, uma pinta preta no canto esquerdo do rosto, feita com lápis de maquiagem de ponta fina, que para não ficar avacalhada.
Não sou mais criança! — diz antes de sair de casa, fazen do questão de parecer maior. É que ela encontrará um garoto. Será a primeira vez que ficarão sozinhos. Será a hora do beijo (ela medita o corpo do menino junto ao seu). No pátio da escola, o riso, a música, a fogueira perturbam a menina que, agitada, come demais e bebe escondido da mãe. O quentão foi ajeitado por Tiago, um amigo mais velho que pediu ajuda para outro amigo mais velho. Tiago tem 15 anos e é o terror da escola. O sétimo ano nunca mais foi o mesmo desde que ele ingressou no Grupo Estadual Jerônimo Cantão, atrasado dois anos. A menina, ao sorver o álcool do copinho, busca as sensa ções que ele proporciona, e de suas axilas brotam gordas gotas de suor que deslizam plácidas pelo vestido azul. Ela não se in comoda com o molhado do vestido, tampouco com o rubor de suas faces. Ao contrário, aquela aparente fragilidade a nutre e alimenta um certo prazer sonoro. Aninha começa a balbu ciar uma melodia indecifrável. Ah, ãham, um-hum... E dança sozinha, apoiada pela própria envergadura. Com a mãe Aninha aprendera a rezar para alcançar um de sejo: “Feche os olhos e peça com fervor e sem parar”. Assim, ao ver Moisés pela primeira vez, no supermercado, de chinelo e sem camisa, talvea a mesma idade que ela, orou por um mês inteirinho. Cinco vezes ao dia. De manhã, ao acordar: "Seja meu namorado"; antes do almoço: "Seja meu namorado"; às três hora da tarde e depois do jantar que ela comia na sala, em frente à TV; e já deitada para dormir, quando apertava os olhos e também o coração e implorava aos céus: "Porrr Favorrrr!". aí falou com ele pelo celular de uma amiga. No início, meio tímida, depois soltinha como um balão que cinge o ar com destino a umaconstelação qualquer.
Em geral, a menina confia em si mesma. E é com razão que se deixa ver ao perceber que Moisés olha para ela no salão de danças. Influenciada pelo encontro que terá com ele, ela ba lança a saia rodada e, de feliz, vai a tão feliz, em segundos. Por força da emoção, tem umas miniconvulsões, algo formal que sobe pelos dedos dos pés e amolece o corpo. Então, ela con fessa algo para o universo, dessa vez com a cabeça mais para o chão do que para o céu, as fitas coloridas tornando-se em baraçadas nas pontas do cabelo, algo que ela não sabe muito bem mas sente. O amigo Tiago não entende por que a menina dança dando pequenos solavancos no ar e a cutuca, levando--a pelos braços para o outro lado do salão. Uma grande parte dela também não entende o alvoroço que faz a carne meio que ceder, meio que cair, e ela estranha as amigas nunca terem re latado nada como aqueles tremores. Carolina é então a própria terra fecunda e dona do misté rio que envolve todas as vidas. É certo que ela parece menos criança agora, e pareceu mulher ao bailar sob as bandeirolas que, de cima, acusaram o mergulho da menina nela mesma. Bandeirolas que as crianças da escola, nesse caso, até as mais velhas, forram obrigadas a confeccionar. Apenas um frio na barriga a incomoda. Carolina teme que, ao falar com Moisés pessoalmente, venha a desmaiar. O medo a leva de volta à mãe e à irmãzinha, onde permanece com Tiago até correr para estar com as amigas, as quais observa e trata com desembaraço, aqui senhora de uma coisa que é só sua, o movimento do seu corpo.
É chegado o momento de enviar a Moisés o Correio Ele gante de envelope vermelho como combinaram. E, como uma folha em branco de um caderno perfumado, a menina encon tra o menino. O primeiro beijo surge confuso, vazio de saliva. A respiração lembrando um tambor musical, alta e alada. A menina em descompasso sente o poder que tem sobre ele, e vice versa. Decidida, ela se deixa tocar lá embaixo por mãos que agem no ineditismo de um garoto fascinado — de olhos fechados os dois comandam o vento que sopra poeira na festa. É 24 de junho. Dia de São João Batista, primo do Altíssimo Se nhor Jesus e haveria de ser com a bênção d’Ele que os dois se encontrariam atrás do corredor principal da escola, às 21:30 horas, em busca do imaginário. E foi. Pouco depois, o menino mudou de cidade, mas isso não im pediu que a menina pulasse para dentro dos sonhos dele num farto estado de amor. Num sonho, Moisés beijava a pinta preta no canto esquerdo do rosto dela e dizia baixinho: “É São João outra vez, anjinho”.
Em: Meu Nome é Meu, Natascha Duarte, Ed. Urutau, págs. 11-14
Parceria que só me engrandece! E no mesmo dia de um conto do Machado. E um dia depois do meu aniversário. E agora com um livro publicado. Que ano! Que setembro! Que amizade a sua!
ResponderExcluirAss. Natascha Duarte