Pular para o conteúdo principal

Meu Nome É Carolina, conto de Natascha Duarte

      A festa junina da escola é um acontecimento esperado por todos, o ano inteiro. Cada membro da organização da festa recebe uma tarefa planejada e cumprida com rigor. Da parte alimentar, cuida dona Olinda, a merendeira que há 30 anos trabalha na escola; da música, o locutor da Prefeitura que nas horas vagas faz bicos como DJ; da coreografia, a professora de Artes, Isabela; e a João, o diretor, cabe punir exemplar mente os alunos do primeiro ao quinto ano que faltem aos ensaios da quadrilha. Aninha está já na sexta série. Para ela, portanto, é facultativo participar da dança. Para os menores, porém, a atração é uma sugestão imperiosa, senão a festa dei xa de existir. Ora, basta os que não a frequentam por razões religiosas se juntarem aos queixosos de plantão, aqueles que reclamam do preço, da hora, do dia, da indumentária, das músicas, etc., que a festa desaparece do mapa num estalo de traque.

Com vontade de correr para adiantar o tempo, a menina chega à festa com o coração na mão, a mãe de um lado e a ir mãzinha do outro. Finos braceletes dourados ornam seus bra ços inocentes. No cabelo ondulado, fitas de cetim multicolori das. Justo ela que adora moda e vive às voltas com as revistas da tia e as costuras da avó tem de usar um vestido emprestado da prima. Por isso, dias antes, a roupa ganhou atenção especial ao ser lavada com sabonete na pia do banheiro e passada a ferro com esmero nunca visto antes na casa. Para a quadriha, fora os lacos de cetim, uma pinta preta no canto esquerdo do rosto, feita com lápis de maquiagem de ponta fina, que para não ficar avacalhada.

 Não sou mais criança! — diz antes de sair de casa, fazen do questão de parecer maior. É que ela encontrará um garoto. Será a primeira vez que ficarão sozinhos. Será a hora do beijo (ela medita o corpo do menino junto ao seu). No pátio da escola, o riso, a música, a fogueira perturbam a menina que, agitada, come demais e bebe escondido da mãe. O quentão foi ajeitado por Tiago, um amigo mais velho que pediu ajuda para outro amigo mais velho. Tiago tem 15 anos e é o terror da escola. O sétimo ano nunca mais foi o mesmo desde que ele ingressou no Grupo Estadual Jerônimo Cantão, atrasado dois anos. A menina, ao sorver o álcool do copinho, busca as sensa ções que ele proporciona, e de suas axilas brotam gordas gotas de suor que deslizam plácidas pelo vestido azul. Ela não se in comoda com o molhado do vestido, tampouco com o rubor de suas faces. Ao contrário, aquela aparente fragilidade a nutre e alimenta um certo prazer sonoro. Aninha começa a balbu ciar uma melodia indecifrável. Ah, ãham, um-hum... E dança sozinha, apoiada pela própria envergadura. Com a mãe Aninha aprendera a rezar para alcançar um de sejo: “Feche os olhos e peça com fervor e sem parar”. Assim, ao ver Moisés pela primeira vez, no supermercado, de chinelo e sem camisa, talvea a mesma idade que ela, orou por um mês inteirinho. Cinco vezes ao dia. De manhã, ao acordar: "Seja meu namorado"; antes do almoço: "Seja meu namorado"; às três hora da tarde e depois do jantar que ela comia na sala, em frente à TV; e já deitada para dormir, quando apertava os olhos e também o coração e implorava aos céus: "Porrr Favorrrr!". aí falou com ele pelo celular de uma amiga. No início, meio tímida, depois soltinha como um balão que cinge o ar com destino a umaconstelação qualquer.

Em geral, a menina confia em si mesma. E é com razão que se deixa ver ao perceber que Moisés olha para ela no salão de danças. Influenciada pelo encontro que terá com ele, ela ba lança a saia rodada e, de feliz, vai a tão feliz, em segundos. Por força da emoção, tem umas miniconvulsões, algo formal que sobe pelos dedos dos pés e amolece o corpo. Então, ela con fessa algo para o universo, dessa vez com a cabeça mais para o chão do que para o céu, as fitas coloridas tornando-se em baraçadas nas pontas do cabelo, algo que ela não sabe muito bem mas sente. O amigo Tiago não entende por que a menina dança dando pequenos solavancos no ar e a cutuca, levando--a pelos braços para o outro lado do salão. Uma grande parte dela também não entende o alvoroço que faz a carne meio que ceder, meio que cair, e ela estranha as amigas nunca terem re latado nada como aqueles tremores. Carolina é então a própria terra fecunda e dona do misté rio que envolve todas as vidas. É certo que ela parece menos criança agora, e pareceu mulher ao bailar sob as bandeirolas que, de cima, acusaram o mergulho da menina nela mesma. Bandeirolas que as crianças da escola, nesse caso, até as mais velhas, forram obrigadas a confeccionar. Apenas um frio na barriga a incomoda. Carolina teme que, ao falar com Moisés pessoalmente, venha a desmaiar. O medo a leva de volta à mãe e à irmãzinha, onde permanece com Tiago até correr para estar com as amigas, as quais observa e trata com desembaraço, aqui senhora de uma coisa que é só sua, o movimento do seu corpo.

É chegado o momento de enviar a Moisés o Correio Ele gante de envelope vermelho como combinaram. E, como uma folha em branco de um caderno perfumado, a menina encon tra o menino. O primeiro beijo surge confuso, vazio de saliva. A respiração lembrando um tambor musical, alta e alada. A menina em descompasso sente o poder que tem sobre ele, e vice versa. Decidida, ela se deixa tocar lá embaixo por mãos que agem no ineditismo de um garoto fascinado — de olhos fechados os dois comandam o vento que sopra poeira na festa. É 24 de junho. Dia de São João Batista, primo do Altíssimo Se nhor Jesus e haveria de ser com a bênção d’Ele que os dois se encontrariam atrás do corredor principal da escola, às 21:30 horas, em busca do imaginário. E foi. Pouco depois, o menino mudou de cidade, mas isso não im pediu que a menina pulasse para dentro dos sonhos dele num farto estado de amor. Num sonho, Moisés beijava a pinta preta no canto esquerdo do rosto dela e dizia baixinho: “É São João outra vez, anjinho”.


Em: Meu Nome é Meu, Natascha Duarte, Ed. Urutau, págs. 11-14

 

Comentários

  1. Parceria que só me engrandece! E no mesmo dia de um conto do Machado. E um dia depois do meu aniversário. E agora com um livro publicado. Que ano! Que setembro! Que amizade a sua!

    Ass. Natascha Duarte

    ResponderExcluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di...

Vamos pensar? (18)

Será que às vezes o melhor não é se deixar molhar?  

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica...