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Filho de Ouro, Inez Cabral

Dei sorte na vida. Apesar das dificuldades para sobreviver, da pobreza, do medo do tráfico, maus tratos das patroas, e outras mazelas, Deus me deu um filho de ouro. Ele fez muitas bobagens na vida, mas quando amadureceu, virou um homem de bem. Trabalhou na PM, chegou a sargento, acabou exonerado. Nunca entendi por quê, nem ele explicou. Arrumou logo outro serviço, virou segurança. Ganha mais. Agradeço todos os dias pela sorte que tenho. A única coisa de que não gosto, é que nesse emprego, ele tem que andar armado. Nunca vou entender por que homem gosta tanto de arma. Ele diz que é pra proteção. Já é homem adulto, sabe melhor do que eu o que é bom.

Estou que não me aguento de felicidade. No meu aniversário, sem que eu esperasse, me deu uma chave de presente.
─Que é isso, meu filho?
─Um presente. Arrumei para a senhora. Se for esperar pela casa prometida pelo governo, vai morrer esperando. Essa é a chave de um apartamento. É da senhora. Não precisa levar nada, está mobiliada, tem de um tudo. Não quero mais a senhora saindo todo dia pra trabalhar, agora vai virar madame. Vamos mudar amanhã mesmo.
Quase passei mal de tanta emoção. Ele é mesmo um filho de ouro. Deve estar economizando há um bom tempo. Sair da Maré para Jacarepaguá é mais do nunca sonhei. Enxugo as lágrimas e o abraço feliz.
Agora estou aqui. Num apartamento novo, com tudo que preciso. Tem até uma TV daquelas que tem internet. Nem sei pra quê serve isso, mas é moda. Liguei pra a patroa, pedi demissão. Ele queria contratar uma mocinha pra me ajudar, mas aí é demais. Não consigo ficar o dia inteiro sem fazer nada.
Quando cheguei, cruzei com uma vizinha tentando carregar suas coisas para fora.
─Bom dia. Está indo embora?
─Sim senhora. Meu marido morreu, atrasei a taxa de segurança, o pessoal me pôs pra correr. Tenho dois filhos pequenos, não sei pra onde ir. Mas Deus há de prover.
─Taxa de segurança? Nunca ouvi falar.
Ela me olhou de um jeito que não entendi.
─Pergunta a seu filho, ele pode explicar.
─Cruzei com uma vizinha se mudando, ela falou de uma tal taxa de segurança. Ela disse que você me explicava.
─Pessoal fofoqueiro! Não esquenta, mãe, tá tudo dominado. Eu resolvo as pendengas, a senhora só tem que ser feliz.
─Tá certo. Mas pra ficar feliz mesmo, queria que você trabalhasse desarmado. Cada vez que ouço um tiro, me apavoro. Você vive na rua. Não consigo dormir enquanto você não chega. A bala come solta por aqui, e você está sempre na rua.
─Não esquenta, mãe, você está segura, por isso tem que pagar essa taxa de segurança. No meu serviço tem que ter arma.
Tenho pensado em como a gente se acostuma com a boa vida. Se não ouvisse tiro toda noite, ia achar que estava no céu. Fico tranquila quando ele volta pra casa. Quase sempre trabalha de noite, dorme de manhã.
Meu dia de labuta acabou. Limpei a casa, fiz comida, passei as camisas dele, por hoje chega. Vou ver a novela, jantar e aí vou dormir. Tomara que hoje não tenha tiro.
─Campainha a esta hora? Quem será? O Jorge ainda não chegou. Ainda agora ouvi umas rajadas, acordei assustada.
─Boa noite, tia, posso entrar?
É o Gilmar, amigo do Jorge, abro a porta.
─Tenho uma notícia triste para lhe dar.
Meu coração dispara, me lembro das rajadas que ouvi ainda agora.
─Aconteceu alguma coisa?
─Não tem jeito simples pra dizer isso, seu filho levou um tiro. Morreu.
Gilmar me olha, não diz nada. Estou zonza. Vejo sempre na televisão. Bala perdida, com certeza.
─Quem foi que fez isso? Meu Deus, meu filho!
O Gilmar vai embora, dizendo:
─De manhã, passo pra buscar a senhora. Tem que ir ao IML reconhecer o corpo, pra poder enterrar.
Passo o resto da noite chorando, tentando entender.
Dois dias depois, sentada, arrasada e sem forças, ouço a campainha de novo e socos na porta.
─Tem uma semana pra dar o fora daqui.
─Mas por que? Este apartamento é meu, ganhei do meu filho.
─Não vai se fazer de inocente. Este apartamento não é seu. É da milícia. Ele morreu, tem que devolver. Deixa tudo como encontrou, leva só suas tralhas.
E agora?
Penso na marquise da casa da madame. Lembro que ela sempre reclamou das pessoas que em vez de procurar serviço, preferem dormir na calçada.


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