Era uma manhã de sábado quando ela nos disse que seu neto lhe pedira para brincar de um jogo especial com ele, um jogo que só pode ser jogado no telefone da mamãe. É muito fácil: só o que você precisa fazer é atirar pássaros de um estilingue gigante para que eles destruam construções onde moram porcos verdes.
- Ah, Angry Birds - dissemos eu e minha mulher juntos. - Nosso jogo preferido.
- Nunca ouvi falar dele - comentou minha mãe.
- Você deve ser a única - retrucou minha mulher. - Acho que há mais soldados japoneses escondidos na floresta sem saber que a Segunda Guerra Mundial acabou do que gente neste planeta que não conhece esse jogo. Deve ser o jogo mais popular para IPhone do mundo.
- E eu que pensava que seu jogo preferido era o Go Fish com as cartas de flores de Israel - respondeu minha mãe, ofendida.
- Não é mais - explicou minha mulher. - Quantas vezes se pode perguntar a alguém sem bocejar se elas têm uma albarrã?
- Mas nesse Angry Birds - disse minha mãe- , embora eu o visse sem óculos, me deu a impressão de que os passarinhos morrem quando batem nos alvos.
- Eles se sacrificam para alcançar um objetivo maior - respondi rapidamente. - É um jogo que ensina valores.
- Sim - disse min ha mãe. - Mas esse objetivo é só desmoronar as estruturas na cabeça daqueles porquinhos lindos que nunca fizeram mal nenhum a eles.
- Eles roubaram nossos ovos - insistiu minha mulher.
- Sim - eu disse. - Na realidade é um jogo educativo que ensina a não roubar.
- Ou, mais precisamente - respondeu minha mãe -, ensina você a matar qualquer um que roube de você e a sacrificar sua vida fazendo isso.
- Eles não deveriam ter roubado os ovos - disse minha mulher, com aquela voz sufocada de lágrimas que aparece quando ela sabe que está prestes a perder uma discussão.
- Não entendo - disse minha mãe. - Aqueles leitõezinhos roubaram seus ovos ou vocês estão falando de castigo coletivo?
- Alguém quer café? - perguntei.
Depois do café, nossa família quebrou seu recorde no Angry Birds quando o trabalho de equipe entre meu filho, um especialista em atirar passarinhos em grupo que batem em vários alvos, e minha mulher, especialista em lançar passarinhos com cabeça de ferro quadradas que podem penetrar qualquer coisa, conseguiu derrubar uma estrutura especialmente fortificada em forma de colmeia na cabeça verde e inchada do príncipe bigodudo dos porcos, que disse seu último "Ho-la" e foi silenciado para sempre.
Comíamos biscoitos para comemorar nossa vitória moral sobre os porcos do mal quando minha mãe recomeçou a nos importunar.
- O que tem esse jogo que faz vocês gostarem tanto dele? - perguntou ela.
Adoro os barulhos esquisitos que os passarinhos fazem quando batem nas coisas -Lev respondeu, rindo.
- Adoro o aspecto físico-geométrico dele - expliquei, e dei de ombros. - Todo esse negócio de calcular ângulos.
- Adoro matar coisas - sussurrou minha mulher numa voz trêmula. - destruir prédios e matar coisas. É muito divertido.
- E melhora de verdade a coordenação - falei, ainda tentando atenuar o efeito.
- Ver aqueles porcos explodindo em pedaços e suas casas desmoronando - continuou minha mulher, com os olhos verdes encarando o infinito.
- Alguém quer mais café? - perguntei.
Minha mulher foi a única foi a única na família que acertou na mosca. Angry Birds é tão popular em nossa casa e em outros lares porque nós verdadeiramente adoramos matar e quebrar coisas. Assim, é verdade que os porcos roubaram nossos ovos na curta abertura do jogo, mas, cá entre nós, isso é só uma desculpa para canalizar a boa e velha fúria na direção deles. Quanto mais tempo penso nesse jogo, mais claramente compreendo uma coisa: por baixo da linda superfície de animais divertidos e suas vozes doces, Angry Birds na realidade é um jogo coerente com o espírito de terroristas religiosos.
Sei que Steve Jobs e seu sucessor não gostariam dessa última frase e sei também que não é politicamente correta. Mas de que outra maneira explicar um jogo em que você é preparado para sacrificar a vida só para destruir as casas de inimigos desarmados com suas mulheres e filhos lá dentro e provocar a morte de todos? E isso para não entrar na questão dos porcos: um animal sujo que, na retórica muçulmana fanática, costuma ser usado para simbolizar raças hereges cujo destino é a morte. Afinal, vacas e ovelhas poderiam tranquilamente também roubar nossos ovos, mas os criadores do jogo ainda escolheram deliberadamente os porcos capitalistas gordos da cor do dólar.
A propósito, não estou dizendo que isso seja necessariamente ruim. Imagino que atirar passarinhos da cabeça quadrada em paredes de pedra é o mais próximo que vou chegar de uma missão suicida nesta encarnação. Assim, essa pode ser uma forma divertida e controlada de aprender que não são só os passarinhos ou os terroristas que ficam furiosos, mas também eu, e só preciso do contexto certo e relativamente inofensivo em que reconhecer essa fúria e deixar que ela corra solta por um tempo.
Alguns dias depois dessa estranha conversa com minha mãe, ela e meu pai apareceram à nossa porta com um presente retangular embrulhado em papel florido. Lev abriu todo animado e dentro dele encontrou um jogo de tabuleiro, em que imagens de cédulas de dólar eram exibidas com destaque.
- Você disse que estava cansada de Go Fish - disse minha mãe -, então decidimos comprar o Monopoly para você.
- O que a gente precisa fazer nesse jogo? perguntou Lev, desconfiado.
- Ganhar dinheiro - disse meu pai. - Muito dinheiro! Voc6e tira todo o dinheiro dos seus pais até que esteja podre de rico e eles fiquem sem nada.
- Que legal! - disse Lev, feliz. - E como se joga?
A partir desse dia os porcos verdes viveram em paz e tranquilidade. é verdade que nem chegamos à vizinhança do I Phone de minha mãe, mas tenho certeza de que se passássemos lá para uma visita rápida, encontraríamos os porcos guinchando satisfeitos depois de fechar uma varanda ou cavar uma toca para seus filhotes. Minha mulher e eu, por outro lado, vimos nossa situação se deteriorar. Toda noite, depois que Lev vai dormir, sentamos na cozinha e calculamos nossas dívidas com nosso pequeno rebento ganancioso, que tem mais de 90% dos imóveis do Monopoly e é até coproprietário de empresas de construção e infraestrutura. Quando terminamos de calcular nossas dívidas de vários dígitos, vamos dormir. Fecho os olhos, tentando não pensar no gordinho de coração frio que geramos, que, no futuro próximo, vai arrancar minha mulher e eu do papel-cartão em que atualmente moramos no jogo de tabuleiro, até que o abençoado sono enfim chegue, voando pelo céu azul, atravessando as nuvens em um arco vertiginoso só para esmagar minha cabeça quadrada em um delírio de vingança na cabeça de porcos bigodudos, verdes e comedores de ovos. Ho-la!
Em: Sete anos bons, Etgar Keret, Ed. Rocco2015,págs. 98-103
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