– Vem cá, Luzia, vem cá!
Foi, com a noiva, para a varanda, sentou-se lá, e apanhando um cigarro, começou:
– Quero saber de ti o seguinte, é verdade que viajaste, ontem, com o Chaves, de lotação?
– Por quê?
– Responde. Admitiu:
– Viajei, sim. É verdade. Cantuária atira fora o cigarro:
– Bem. O negócio é o seguinte, tu sabes que eu não sou ciumento, não sabes?
– Sei. Continuou:
– Pois é. Mas tudo tem um limite. E o meu limite é, justamente, o Chaves. Tu podes viajar, de lotação, com qualquer outro; viajar de bonde, de lotação e, até, de taioba. Mas o Chaves, não. Com o Chaves não quero.
– Ué!
Cantuária ergue-se. Em pé com as duas mãos enfiadas nos bolsos, disse a última palavra:
– O Chaves é um canalha. Basta dizer o seguinte, não respeita nem as cunhadas!
O miserável
Espantada com a indignação do noivo, Luzia caiu na asneira de objetar: “Mas o Chaves parece tão bonzinho!” Foi um deus nos acuda. Diante da noiva em pânico, ele armou um barulho tremendo; e repetia: “Qualquer um, menos o Chaves!” Para esclarecer a pequena, em termos definitivos, fez uma biografia relâmpago do patife. Ela ficou sabendo, assim, que o acidental companheiro de lotação só pensava em mulher, sem discriminação de casadas, solteiras, viúvas, desquitadas, brotos e balzaquianas. Por último, Cantuária referiu um episódio, que parecia anedota, mas por cuja autenticidade jurava de pés juntos:
– Imagina tu que morreu um amigo do Chaves, amigo de infância, quase um irmão. Pois bem. Tu sabes que fez ele, o canalha? Em pleno velório, deu em cima da viúva, nas barbas do cadáver! Apalpou a viúva!
Ingenuidade
Cantuária devia dar-se por satisfeito. Durante uma hora e cinquenta minutos, incumbira-se de arrasar o Chaves, sem deixar pedra sobre pedra. E não há dúvida que Luzia ficara para sempre esclarecida. No dia seguinte, porém, ocorreu uma coisa bastante curiosa: Cantuária chega e retoma o assunto da véspera. Excitado, bufava:
– Te digo, com pureza d’alma, é o único canalha puro que eu conheço! O único!
Ao lado, trânsida, Luzia não dizia nada. E Cantuária, no exagero do seu escrúpulo, exigia: “Não quero nem que cumprimentes esse miserável!” Ela fez espanto: “Nem cumprimento?” Pigarreia e acaba transigindo:
– Cumprimentar, pode. Mas só cumprimentar, percebeste? Nada de conversa, de bate-papo.
Insinuou:
– Conversa não tira pedaço, meu filho! Pulou:
– Tira, sim. Às vezes, tira. Como é que se conquista? Pela papa. E dizem que nem um poste resiste à papa do Chaves. Um bico-doce! Não, senhora, distância, ouviu? Muita distância.
– “Bom-dia”, “boa-noite” e só!
Curiosidade
Chaves passou a ser a ideia fixa do Cantuária e, também, ideia fixa de Luzia.
Uma tarde, ela protestou:
– Tem dó! Você só fala no Chaves! Muda de chapa, criatura! — e confessa: — Até sonhei com o Chaves, imagine!
– Sonhou? Suspira:
– Tenho sonhado! Mas é natural, você só fala nele!
Com um cigarro apagado nos lábios, ele catava os fósforos nos bolsos. Mas a verdade é que experimentava uma surda irritação. Deixa passar um momento e, súbito, quer saber:
– Que espécie de sonho você teve com o Chaves? O que é que houve no sonho?
Houve bandalheira?
Crispou-se:
– Não digo!
E o Cantuária, atônito:
– Por quê? Não diz por quê? — e insistia, lívido: — Houve alguma pouca vergonha no sonho?
Mas não houve meio de lhe arrancar uma palavra, nada. Limitava-se a responder: “Bobagem, bobagem!”
O noivo, humilhado, ofendido, explodiu: “O sonho é uma coisa infecta!” E ao despedir-se, diz para a noiva, ainda emocionado:
– Nunca te esqueças, o Chaves é o único canalha integral do Brasil!
Obsessão
Sonhara, sim, com o Chaves. Não uma vez ou duas, mas umas dez, no mínimo. E o pior é que ao sonhar pela quarta vez, resolvera ligar para o patife. Conversaram, no primeiro telefonema, uns quarenta minutos. A princípio, pôde esconder a identidade. Súbito, o Chaves exclama: “Já sei! Você é a Luzia!” Ainda quis negar, mas teve que admitir: “Sou a Luzia, sim.” Vacila, porém acaba confessando:
– Meu noivo fala tão mal de ti que resolvi te telefonar.
Então, começou um romance telefônico que era, a um só tempo, uma delícia e um martírio. Luzia deixava o telefone sentindo-se a última das mulheres. Mas o diabo é que o remorso valorizava o prazer. Adorava a voz do Chaves, o riso, a gíria especialíssima, a ternura persuasiva e viril. Ele perguntava, com bom humor: “Tu me achas um tarado?” Suspirava:
– Pelo contrário, te acho normalíssimo. O fato é que o Chaves se converteu no grande e, talvez, único problema de sua vida.
Queria fugir, mas faltavam-lhes forças. Até que chegou o momento em que ele começou a desejar os encontros pessoais. Luzia caiu das nuvens: “Você se esquece da minha situação? Que eu sou noiva e meu noivo tem horror de ti? Deus me livre!” Chaves deixou passar o pânico. No dia seguinte argumenta:
– Você não pode ser vista comigo, claro. Mas há um remédio, uma solução, meu anjo. É a seguinte, eu arranjo um lugar discretíssimo, onde possamos conversar, calma e docemente. Tu não achas que é uma ideia fabulosíssima?
O abismo
Ao ouvir falar em apartamento, quase desmaiou no telefone: “Que ideia faz você de mim?” Mas ele, que já esperava esta resistência inicial, insiste: “Te juro que não tocaria num fio do teu cabelo! Quero conversar contigo, só!” Ela, trêmula, resistia: “Não acredito em homem!” E Chaves, fatalista: “Paciência!” Mas não desistiu. A partir de então, com amorosa tenacidade, trabalhou o espírito da garota. Prometia:
– Você sairá, como entrou. Faz a experiência, faz! Juro que não te darei nem um beijinho!
Durante dois meses, ela resistiu dia após dia. Até que, uma tarde, soluçou no telefone: “Vou, pronto, vou!” E foi, realmente, no dia seguinte, com um casaquinho vermelho, uma pequena echarpe e um ar de menina indefesa. O apartamento era num 12o andar; ao entrar, viu uma janela, que se abria para a tarde. Vira-se para o Chaves e, fazendo beicinho, ameaçou:
– Se você tocar em mim, eu me atiro por ali, ouviu?
O sedutor
Passaram no apartamento, umas duas horas. Nos primeiros dez minutos, Luzia viveu na expectativa do assalto iminente, do ultraje inevitável. Todavia, o Chaves, muito senhor de si, apenas cordial, não teve um gesto suspeito. Colocou entre si e a menina, uma mesinha protetora. Então já sem medo, à vontade, ela começou a experimentar uma sensação de profundo bem-estar. Esqueceu-se de tudo e de todos. Foi ele que, em dado momento, olhando o relógio, ergueu-se: “Já está na hora de ir, meu anjo.” Luzia levantou-se, apanhou a bolsa. Ele diz: “Não te disse que não te tocaria? Você está mais pura, até, do que antes.” Luzia chegou a dar dois ou três passos em direção da porta. Súbito, estaca. Volta-se e corre para o rapaz. Agarra-se a ele numa espécie de cólera:
– Se tu não me beijas, eu te beijo!
Sua boca procurou a do rapaz. No fim do terceiro ou quarto beijo, a pequena ainda dizia, fora de si:
– Bobo! Bobo!
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