“Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor.” Você sorriu e cantarolou esses versos? Provavelmente possui certa idade. Músicas revelam muita coisa da nossa trajetória e idade.
Por que uma música de 1966 - que não está entre as mais elaboradas de Chico Buarque - tem o poder de me fazer sorrir? Gosto dialoga com memória, sempre. Os pratos da minha infância embasam minhas afinidades afetivas com a culinária. Minha mãe seria uma sofisticada chefe de cozinha, capaz de assombrar os grandes mestres de Paris? Não, com certeza, porém os cozinheiros franceses não me serviram feijão em um prato fumegante com um sorriso na Rua São João, em São Leopoldo (RS). Se eu tivesse sido exposto a escargots à provençal na primeira infância, teria o mesmo apreço? Não sei... Na minha infância, as lesmas nunca subiam à mesa.
Como aprendemos com Marcel Proust e sua cena famosa dos bolinhos Madeleine, o cheiro de uma comida evoca recordações e reconstrói memórias.
“Essa eu conheço, essa é do meu tempo”, remete a uma construção cerebral afetiva que associa o passado - refeito e reformado - a uma alegria. A música-prato-memória reconstrói minha infância e juventude. Estabelece uma falsa estética: “Naquela época as músicas eram bonitas, hoje não se faz mais algo assim”.
O mundo fez e faz valsas brilhantes. Sorrimos com o Danúbio Azul, de Strauss.
Está em ascensão “ovo perfeito” nas cozinhas estreladas do mundo. É uma elaborada versão que faz a iguaria cozinhar em duas temperaturas diferentes: uma para a clara; outra para a gema. Maravilha!
Lembro-me sempre do ovo frito que minha mãe fazia em uma frigideira um pouco amassada e pretejada ao fundo. Se meu último pedido antes de um pelotão de fuzilamento fosse escolher uma refeição, eu dispensaria o cardápio de Ferran Adriá. Pediria, incontinente, feijão, arroz e ovo frito da Dona Jacyr. Memória é sutil e define gostos.
Em ano eleitoral, nossos políticos tentarão controlar a memória e afirmar que houve um período muito mais feliz associado a eles. “Vote em mim, eu restauro sua infância e juventude perfeitas.” “Apoie-me, e o cheiro do bolo da vovó voltará à mesa.” Sabemos que é sempre uma falsa promessa. Saímos do paraíso e, talvez, nunca tenhamos de fato estado nele.
Enquanto isso? Fico à toa na vida, olhando a banda passar, pensando naquilo que era bom... Esperança para o futuro e alguma melancolia para hoje.
Do Estadão 31.8.22
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