aquilo que está oculto, escondido
Da janela do banheiro Antônia espia o vizinho na hora do banho outra vez. Pela pequena fresta que se forma entre o vidro basculante e a parede aparecem os olhos e o tampo da cabeça dele. Expostos também ficam o tampo da cabeça e os olhinhos dela.
Os dois moram no mesmo prédio, em torres diferentes e paralelas, de forma que a dele fica de frente pra dela e assim os respectivos banheiros se contemplam à distância de alguns metros - o da menina no segundo andar, o do rapaz no primeiro.
Para ver o vizinho Antônia se lança até a janela subindo no vaso sanitário e fica nas pontas dos pés. Olha sem ser vista. Os pés doem mais que a unha encravada. Latejam. Se a mãe descobrisse agora o que faria?
Aos 11 anos de idade, a menina entende tudo de olhos e tampos de cabeça. E elabora teses sobre o assunto para os amigos da escola, sem, claro, revelar a fonte de tal sabedoria. Os que portam tampos redondos certamente têm olhos fartos e concordam com esse governo que aí está, ela diz. Olhos marrons combinam com cabeças quadradas que traem as esposas aos domingos. Tampos ovais podem pertencer a homens que frequentam a igreja com olhos desconfiados e caídos. E não para: Rapazes bonitos, altos e generosos (refere-se a Arthur em segredo) têm um olhar oceânico e um tampo indefinido, não que isso seja falta de personalidade.
Uma amiga pergunta se só homens têm olhos e tampos de cabeça. E as mulheres, Antônia, como são? Antônia nunca havia pensado nisso e não responde. Para a menina o masculino diz mais sobre a experiência humana que as aulas da Professora Margareth, pelo masculino desfilam verdades indizíveis. Como agora no banheiro. Antônia sabe exatamente o que Arthur sente só de observá-lo. Ele está eufórico, e fumou um ou dois cigarros no clube mais cedo, e nadou sem touca de proteção para o cabelo. Percebe ainda que ele a ama.
Com a desculpa de fazer o número dois e precisar de banho depois, Antônia se demora no banheiro. A irmã bate na porta:
Sai daí, a mãe vai te matar.
Sem dar bola, a menina continua em cima do vaso sanitário.
Minha barriga travou, mente. Destravou, dá descarga, Ainda bem, né? Ufa. Vou pro chuveiro, abre a torneira.
Entre as torres do edifício existe um vão encardido e perpétuo. Antônia se imagina caindo no vão e estatelando no chão. O garoto do banheiro corre ao seu encontro e a salva da morte precoce com um sopro. É o Sopro de Ítalo, ela fecha os olhos. Ou seria Sopro de Ícaro (lembra de uma coiserada sobre mitos que a irmã contou). Sairiam de lá voando os dois… Aos poucos, Antônia descobre como funcionam os olhos de Arthur quando ninguém mais os vê. Em súplica os olhos de Arthur cantam para ela.
Sua jeca, sai desse banheiro agora. Você precisa buscar a revista Veja da mamãe lá embaixo, o Seu Alcino não pode trazer, tá ocupado.
Vai você, vadia!
Não posso, estou menstruada.
A menina sai do banheiro descontente. Aquele menino merece seu tempo, ele deveria ser visto com demora em uma sala, iluminação apropriada, música do Caetano. Pelado, não. De roupa bonita. E escadas, muitas escadas na hora de ir embora da exposição pra alegria não acabar. Degraus intermináveis que ela iria saltando em câmera lenta. Decidiu que faria um poema.
Arthur ficou sendo o amor idealizado da vida dela. E ela ficou sendo o meu, não que eu a quisesse para mim, éramos amigas. Eu queria era ser como ela.
Eu morria de inveja da minha amiga, ela tinha vizinhos fabulosos e nos fundos do prédio um colégio de freiras. Da sacada ela podia ver as freiras colhendo alfaces verdes toda manhã. Havia uma aura intelectual presente no ambiente em que ela vivia, escritores, advogados, jornalistas e empresários se esbarravam nas dependências do edifício produzindo conversas animadas que eu presenciava de longe. Uns ganhando mais, outros menos, os moradores do prédio misturavam-se sem se defender.
Antônia demorou a vestir roupa para descer até a portaria e ao pegar o elevador deu de cara com o garoto do banho. Dentro do elevador ela se viu refletida no espelho de corpo inteiro e ali estava uma imagem em construção. Um dia serei mulher, refletiu pálida, vivendo uma vida mais pensada que realizada. Acho que ela sorriu para ele.
A sós com ela, Arthur a atravessou com olhos de garimpo e um tampo de cabeça estreito, que agora mais de perto, Antônia conseguia identificar.
Você já usa sutiã? ele ficou muito tempo no ã e fitou os pequenos seios dela com boca entreaberta e um pedaço da língua para fora.
Ela me disse que não foi difícil imaginar o cenário: uma canoa vazia navegando em alto mar em um dia frio de tempestade, e se dando por mulher, minha amiga respondeu:
É claro que eu uso, e nunca mais voltou a observá-lo pela janela.
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