Eu pretendia escrever uma carta de amor mas carrego na alma uma dor tão grande que nada digo ao
papel. Ele me flerta até o deserto e cai exausto de minha ausência. Acho que não sei dizer coisas bonitas.
papel. Ele me flerta até o deserto e cai exausto de minha ausência. Acho que não sei dizer coisas bonitas.
Não se preocupe, como sempre dei de comer aos nossos filhos Cuba, Kauia e Novi, nomes escolhidos por você a revelia, todos baseados em histórias em quadrinhos. Você que teve um filho atrás do outro não me deu a menor chance.
Para hoje cozinhei macarrão ouvindo o Spotify gratuito no meu celular. De nada adiantou. O Cuba me criticou citando aqueles filósofos dele, antropólogos do caralho. O Novi o imitou, e obcecado por futebol como é, usou esse esporte safado para me atingir, como se eu fosse o técnico de futebol da nossa casa. Kauia, como quando da outra vez, enfiou um garfo na minha mão na hora que ia comer. Fundo. Tudo porque sentia saudades de você. Nessas ocasiões eu perco a cabeça e muito sangue.
De dia os meninos vão indo. De noite me culpam pela separação. Não sirvo pra pai. Nem o receio de que os vizinhos chamem as autoridades me intimida, e muito disse aos nossos filhos esta noite, os xinguei, gritei, bati na mesa, esmurrei a porta. E fui dormir.
No quarto, retomo sua carta de amor. Ela poderia começar com um pedido de desculpas mas isso vai irritar você. Rasgo o papel. Seria melhor telefonar? Lorena, sou eu! Eu não sou como meu pai. Confia! Não, não, pelo telefone você reclamaria de mim outra vez. Saiba que o Bolota, o cão, está obeso; como você não se preocupa com ele? Tenha piedade de mim. Quando prometi a viagem a Paris eu estava bêbado e cansado! Você por acaso acompanha a inflação?
Não consigo dormir. Talvez te mande flores. A boca, a mesma de minha nascença, está seca e frita, e como o papel, me tira a graça da reconciliação com você. A língua, que vive sozinha dentro da boca, não ousa se aproximar dos dentes ásperos, presa no céu sem estrelas, como que envergonhada. E assim se passam os anos.
Você nem telefona mais. Os meninos pulam de escola em escola, gravitam pela casa da minha mãe e por consultórios psicológicos quando eu consigo pagar, enquanto eu; eu busco respirar sem dificuldade. Sou eu que estou na linha do tiro, entende? Como pedir perdão se não me sinto culpado? Tenho boa intenção, porém falta motivo pra te querer, rainha má. Você é um cristal que perdeu a luz.
À espera de um milagre que provoque em mim as palavras exatas, vou ver um filme do Buñuel. Minha mão sangrando do garfo. Para onde mando a carta? Sua irmã disse que não sabe de nada. Ainda no Chile com aquele homem, meu bem?
Em criança eu apanhava do meu pai, homem sem instrução, um idiota que viva às custas de minha mãe. Eu sou diferente. Formei-me em contabilidade e gosto de cinema de arte, motivo pelo qual você e eu discutimos algumas vezes. Nessas horas a diferença entre nós parecia profunda.
Que criança não sonhou uma única vez na vida... Eu não sonhei, Lorena! Nos meus pesadelos eu via monstros em preto e branco sem os enfrentar; via bichos com tentáculos enormes invadindo o castelo onde morava uma princesa de roupa esvoaçante e paralisada de medo. Transformei-me num adulto monstro, pior que os monstros dos pesadelos infantis, e insone. Algo me falta diariamente, uma mão no ombro, um espírito amigo e carícias.
Desculpa por não ter escrito antes, é que ando vazio de significados. Sei que três anos é muito tempo. Espera um pouco…
Foi preciso novo curativo na mão alienada que agora não serve pra nada, nem para escrever uma carta. Terminei o primeiro filme. Continuo outro do ponto de onde parei ontem. São muitos filmes e quase 4 da madrugada. A internet é minha Dama de Vermelho. Lorena, você nunca compreendeu essa minha obsessão pelo Bergmam. Você dizia que o cinema dele era intragável e corria pro Tik Tok, minha menina cheia de graça. Sou um homem em ruína. A quero de volta perto de mim com sua saliva na minha orelha.
Porque minha mão teima em sangrar, o lençol fica todo vermelho na hora de me vestir para o trabalho. Meu sangue é vermelho como o seu, porra! Homem sente dor de amor. Sente o peito estrangular por não ter dormido de noite nem de dia. É penoso ser homem e estar sozinho com nossos filhos de nomes ridículos.
Só dessa vez tentarei te encontrar. Ouça: É o barulho do dia que chega suave na nossa casa. Os carros passeiam na rua voltando da madrugada envoltos em palavras doces de amor. Pássaros despertam aflitos em ninhos brancos de ovos, cientes e dedicados. Isso me lembra de uma vez que usei um pesadelo para atrair minha mãe para o meus cabelos. Ela correu ao meu quarto e, coisa incomum, permaneceu até o outro dia, enfurecendo meu pai. O velho me atingiu com um copo de vidro que furou meu rosto, tinha ciúmes de mim, deixando a cicatriz que você tanto lambeu. Sobreviver à mentira que ele contou à mãe sobre o nosso “acidente doméstico” doeu mais que a ferida na minha cara, e ainda assim, cada minuto passado ao lado dela valeu a farsa; ela que chegou com cheiro dele e foi ficando por mim.
Querida, entre nós tudo vai dar certo. Volta, se não me mato.
José.
Do site: nataschaduarte.com.br
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