Flor tem moda como roupa de mulher. E as plantas do tempo antigo, flores, folhagens e ervas de
cheiro, ninguém as cultiva mais. Agora são só aqueles estúpidos fícus italianos que parecem feitos de plástico, os antúrios e até tulipas.
Hoje em dia, principalmente nas cidades grandes, acabaram-se os manjericões.
E as manjeronas, e as alfavacas e de modo geral todas as ervas cheirosas.
Quem é que ainda planta alecrim? Quem é que ainda conhece malva-rosa?
Rosas, já cultivei rosas quando morava na Ilha do Governador, e era um problema obter mudas das velhas rosas tradicionais dos jardins brasileiros.
Rosas Paul-Neron que o povo chama de Palmeirão, Rosa Amélia com seu tom de rosa-claro, verdadeiro cor-de-rosa. Rosas de cacho com que as moças gostavam de enfeitar os cabelos. Rosas mariquinhas, que em linguagem de catálogo, se chamam com um nome horrível - floribundas - e que hoje só aparecem nas suas variedades mais complicadas. Rosas príncipe-negro, como se feitas de veludo sombrio.
E depois das rosas vem o capítulo dos cravos. Agora só conhecemos esses inexpressivos cravos de plantação industrial, enormes, uniformes - e sem perfume. Nos tempos de dantes, no interior, toda moça tinha à janela do seu quarto um jarro de barro com um craveiro. Cravos brancos, apertados, de coração rosado, que eram prenúncio de casamento. De cheiro tão forte que, aspirados com força, entonteciam. Cravos vermelhos, de dar aos namorados, em sinal de amor sem fim. Cravos que se guardavam secos dentro do livro de reza, como recordação. E além dos cravos havia as cravinas, singelas, dobradas, lisas e rajadas. E ainda havia, tão importante quando o dos cravos, o capítulo dos jasmins. Jasmim-estrela, que podia ser grande e pequeno, de pétalas tão leves e vulneráveis, que a flor parece feita só de perfume. Jasmim-do-céu, jasmim-laranja; deste tenho um pé junto ao alpendre do Não Me Deixes, que me embalsama o terreiro quando está em flor e se cobre de miniaturas douradas de laranjas, ao acabar da floração.
Jasmim-do-imperador, jasmim-de-são-josé, jasmim-caiano, jasmim-do-cabo, a glória dos velhos jardins, que se chama também gardênia.
E resedá? Meu Deus, que estranha anomalia da sensibilidade fez com que se abandonasse o resedá? E bogari? Ai, de bogari já nem falo que me dói o coração.
Miosótis, flor da inocência, ninguém vê mais também. E amores-perfeitos são dificílimos; ah, os amores-perfeitos de Guaramiranga, que minha prima Elsa acondicionava em caixinhas forradas de bambu japonês com os talos envoltos em algodão úmido, e eram o mais precioso dos presentes. E as angélicas, que nos livros se chamam tuberosas, e são as flores de espantar vampiro. Devo ter qualquer pingo de sangue de vampiro, porque sempre detestei angélicas.
Desapareceram as sebes e os caramanchões de madressilvas - madressilvas que cheiram a abelhas e a mel. E, falando em caramanchões, sumiram-se também os estefanotes e as simpatias com seus maciços vermelhos, e uma trepadeira de cachos brancos e arroxeados, que andou muito em moda em meados do século passado (imagine, século 20 já está no rol dos séculos passados!) e ganhou o nome de Coelho Netto.
Todas essas flores para mim são saudades da infância, pois ambas as minhas avós eram jardineiras empedernidas, que jamais fizeram uma viagem sem uma bagagem subsidiária de embrulhinhos com galhos de mudas, batatas, bulbos, sementes - e até mesmo vasos com plantas, aparentemente preciosíssimas, pois era mister carregá-las no colo, durante os percursos de trem.
Nos Estados Unidos, na casa de George Washington, em Mount Vernon, na velha Williamsburg que Rockefeller restaurou, tão importante quanto a restauração dos edifícios é a recomposição dos jardins com o seu traçado e as suas plantas do século 18. Fizeram pesquisas minuciosas e, em muitos casos, tiveram de ir procurar na Europa os espécimes esquecidos ou transformados, hibridados e deturpados pela moderna jardinagem.
No Brasil, nós ainda não chegamos a esse eterno retorno ao passado. Há os jardineiros sofisticados das casas ricas com os arranjos pedantes de plantas de importação recente, e há o comércio de flores, que se reduz aos produtos de fácil cultivo, de boa resistência e venda fácil. Comércio de que é expoente típico o horrendo agapanto, a flor mais feia e triste do mundo, com a qual se insultam os mortos no Dia de Finados, cobrindo-lhes os túmulos com suas umbelas sinistras. Eu, defunta, chegarei às piores represálias, puxarei pelo pé, arrastarei correntões, aparecerei de mortalha fosforescente, soltarei gargalhadas macabras, assombrarei de todas as maneiras o herdeiro mal-agradecido que me puser agapantos na cova. Perdôo tudo, até anulação de testamento e enterro de terceira classe; mas agapanto não.
Fonte: Academia Brasileira de Letras
Imagem: Agapanto (lírio africano; flor do Nilo) Agaphantus africanus
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.