Noronha de Mello e Silva Franco, na Quissama, foi completamente devastado por um ataque de formiga vermelha. Segundo o professor Silva Franco, que se encontra em Angola ao serviço da Real Sociedade Britânica de Zoologia, os quissondes devoraram uma colecção de ofídios embalsamados que lhe haviam demorado oito anos a completar. No desastre pereceu ainda o guarda do laboratório.
in “A Gazeta de Loanda” de 20 de Março 1901
Na última tarde da sua vida, quando depois do costumeiro almoço de fungi e quizaca se estendeu na esteira para gozar a sesta, o velho Caxombo sonhou com o mar. Mas ao acordar já não se lembrava disso, e mesmo que se lembrasse não teria atribuído ao facto importância alguma. Para ele, que fora criado por um branco e pensava em português, o mar era apenas o mar.
Assim, e até quase à hora do sol-pôr, esse dia foi para o velho Caxombo igual a todos os outros. Já há oito anos tinha aquele emprego como guarda de uma pequena estação de empalhamento de cobras, em pleno sertão da Quissama. Fora o professor Silva Franco que lhe obtivera o lugar, salvando-o assim de morrer na miséria, pois Caxombo estava a dobrar o cabo dos sessenta e deixara de poder exercer com a agilidade requerida o seu antigo mister de carregador de machilas. Agora envelhecia tranquilamente, entregue à íntima e minuciosa tarefa de imaginar a sua própria morte. Via-se a morrer de muitas maneiras, convicto de que se as conseguisse idear a todas nenhuma delas se concretizaria. Mas, a despeito de tal obsessão, não intuiu nem naquele dia nem nos que o precederam quaisquer sinais aziagos.
Ao velho Caxombo aquele ofício de guarda pesava pouco, pois a Estação situava-se em lugar remoto e o gentio das redondezas era pacato e sem cobiça. De tempos a tempos o professor Silva Franco aparecia no local, acompanhado por um mulato de nome Souza, e nessas alturas o velho Caxombo ajudava os dois a bater o mato à caça de cobras raras. Mas a amior parte dos dias passava-os ele sem ocupação alguma, entretido tão-somente a imaginar as circunstâncias em que ocorreria o seu próprio falecimento.
Naquela tarde, portanto, o velho Caxombo despertou de sua sesta com a quietude de sempre e sem se lembrar que sonhara com o mar. O sol declinava quando, numa angústia crescente, se deu conta de que qualquer coisa estava errada. Qualquer coisa estava errada e ele não sabia o que era. De súbito compreendeu: o silêncio enchia tudo. Um silêncio espesso como uma noite sem lua. Não havia pássaros. Todos os pássaros se tinham ido embora.
O velho Caxombo saiu para o meio do capinzal fazendo um enorme esforço para escutar fosse o que fosse. Ao princípio conseguia apenas distinguir o sussurro da brisa a enroscar-se no capim. Depois, pouco a pouco, começou a perceber um crepitar abafado; um ruído distante mas cada vez mais firme.
Trepou a custo até ao topo de um morrozinho fronteiro e daí alargou os olhos pela planície. Na direção de onde vinha o ruído o capim arfava, para baixo e para cima, animado por uma força que não podia ser a do vento.
“Quissondes!”, exclamou o velho. E viu-os um por um, milhões de pequenos assassinos ansiosos, a progredirem, rápida e inexoravelmente em direção a si. Primeiro ocorreu-lhe lançar fogo ao sertão. Mas era a época das chuvas e o capim estava verde, dificilmente arderia. Fugir também não era possível. Ele estava velho, muito velho e o corpo não suportaria o esforço. “Aqui está”, pensou desesperado, “uma morte que nunca imaginei.”. Entrou para dentro de casa e fechou a porta. “Não!”, gritou alto e com raiva, “não vou morrer assim!”.
Dentro em pouco as formigas começariam a penetrar por baixo da porta, pela janela quebrada, por todas as fendas, buracos e interstícios da pequena casa. “Resta-me pouco tempo”, murmurou o velho, e pôs-se a procurar no armário um veneno qualquer. Se tinha de morrer morreria ao menos de uma forma rápida e menos estúpida. Então, de repente, deu com o garrafão de ácido sulfúrico e começou a rir. Não, não morreria! Sempre a rir pegou em quatro alguidares, dos grandes, colocou cada um deles debaixo dos pés da pesada mesa da sala, e distribuiu por todos o conteúdo do garrafão. Depois, serviu-se generosamente de vinho, de fungi e de peixe seco e trepou para o tampo da mesa, disposto a enfrentar o cerco dos quissondes.
Os primeiros apareceram por debaixo da porta, isolados e tontos, farejando o ar com as compridas antenas. Corriam em círculos, paravam e corriam de novo, e o velho Caxombo conseguia ver distintamente a forma como moviam as pinças, entrechocando-as, como um açougueiro a amolar as facas.
Desvairadas com a presença do velho trepavam aos montões pelos alguidares, para logo recuarem, atingidas pelas emanações do ácido. Caxombo, com uma garrafa de vinho na mão, ria-se em gargalhadas histéricas, cuspia nas formigas e troçava delas: “Ninguém come o velho Caxombo”, gritava com o gargalo meio enfiado na boca, o vinho escorrendo-lhe pelo queixo, “Caxombo é muito mais espertíssimo que as formigas…”.
Não foi.
Mas só demasiado tarde se apercebeu disso. Os quissondes haviam começado a escalar as paredes e corriam decididos pelo teto, concentrando-se exatamente por cima da mesa onde o velho continuava a rir e a beber. Ao dar por que as formigas trepavam pelas paredes, Caxombo seguiu-lhes com os olhos o trajeto e o riso morreu-lhe nos lábios, subitamente sem sangue. Os insetos tinham-se enovelado em grades bolas sobre a sua cabeça e uma delas oscilava já, prestes a cair. Então Caxombo dobrou-se sobre si mesmo, como um bicho-de-conta, e enterrando a cabeça entre as mãos fechou os olhos.
“Estou a sonhar”, gemeu baixinho, “é claro que estou a sonhar.”.
José Eduardo Agualusa, in A Feira dos assombrados e outras estórias verdadeiras e inverossímeis
Fonte: Anotassonhos
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