Os sequestros estão voltando à moda. É verdade que o último terminou bem, mas um dos receios que a gente tem é que a coisa possa se generalizar, passando, por exemplo, da polícia internacional para a polícia familiar.
Imagine a seguinte situação. Num sábado à tarde você está em casa, lendo. Sua mulher saiu. De repente vem seu filho e pede que você o leve ao cinema, ou ao parque ou a qualquer lugar. Você diz que não, que está lendo, e que tem tanto direito à leitura como ele à diversão. Ele insiste, você finca pé. Ele sai, fechando a porta atrás de si. Você, ainda que aborrecido, volta à leitura.
Um minuto depois, um discreto ruido chama sua atenção. É a chave girando na fechadura. Você dá um pulo, corre até a porta - mas é tarde demais: seu filho acabou de trancá-lo no quarto. Abre esta porta, você ordena, no tom imperioso que sua autoridade paterna exige. Não abro, diz o garoto, e estabelece suas condições: só lhe dará a liberdade se você levá-lo ao cinema ( ou ao parque, ou a qualquer outro lugar). Quer dizer: você foi sequestrado. Por seu próprio filho, em sua própria casa. Incrível, mas verdadeiro.
E agora? Calma, você diz a si mesmo. A situação é desesperadora, porém não grave. O que fazer? Há muitas possibilidades. Você pode, por exemplo, parlamentar com o pequeno terrorista através da porta fechada, explicando que isso não é jeito de conseguir as coisas, que é melhor ele abrir, se não a represália virá, etc. Pouco provável que dê certo. O garoto tem a faca e o queijo na mão, sem falar na chave, e assim não tem porque ceder.
Você pode pedir socorro. O telefone está ali, ao alcance da mão. Basta você ligar a um amigo ("Desculpa o incômodo, meu caro, mas é que aconteceu uma coisa engraçada...") mas isto não chega a ser uma solução, porque o amigo também terá de convencer o garoto. Dentro desta linha, porém tendendo mais para a histeria, você pode chegar à janela e gritar: Socorro! Estou sendo vítima de um sequestro! Mandem a Swat! e por aí afora. Mas, convenhamos, sua dignidade será definitivamente abalada.
Pular a janela? Talvez. Se ela não for gradeada, ou se você não estiver num edifício de dez andares. Mas, de novo, fica horrível para um pai de familia saltar da janela da própria casa, não falando que você pode ser confundido com um ladrão e preso na hora.
Para o lado violento: você pode arrombar a porta. Ou pelo menos tentar, porque nada indica que você conseguirá - é uma maciça porta de madeira de lei, posta ali exatamente para barrar o pequeno intruso. E, mesmo que consiga, será que seu orçamento, já abalado pelo aumento do BNH, suportará o custo do conserto?
Finalmente, você pode dar uma de tratante: você finge que concorda, e tão logo o garoto abre a porta, você o agarra e lhe dá uma boa lição. Mas será que você pode fazer isto? Mentir para seu próprio filho? Quantos destes terroristas não são jovens que sofrerram, na infância, frustrações causadas pelas mentiras paternas? Não, mentir, não.
O jeito talvez seja ir ao cinema mesmo. Você se lembra que está passando um filme muito bom, num cinema de bairro. Parece que é sobre um sequestro, ou coisa assim. Tema muito atual.
Scliar, Moacyr,Um País Chamado Infância, Ed. Ática 2002, págs 20-23
Ilustração de Marcelo Pacheco.
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