Querida Ute,
Desisti de buscar no passado qualquer justificativa para explicar
como vamos vivendo sem poesia nesse país esses dias
Poderia me esforçar para dizer como foram feitas as escolhas
da minha geração e as minhas e separar as reativas das reacionárias
Mas você sabe muito bem que as histórias são mentirosas
e eu faria papel de palhaço aqui
A verdade é que não somos nós quem decidimos as coisas, Ute.
Fazemos apenas na medida em que nos restam os espaços para tanto
E é sobre isso que escrevo,
É o que tentei dizer ontem mas você
tendo estado o tempo todo sob efeito de entorpecentes
não teve disposição para ouvir.
Ainda assim é preciso falar sobre essa condição inevitável do poeta contemporâneo
É nos espaços que está a poesia, ou que se forma a poesia, talvez.
Como se forma a poesia é questão da qual trataremos outro dia
Falo dos espaços, Ute. Não de apartamentos ou quartos, com janelas e vistas amplas
para rios e praias, montanhas ou esquinas com quatro ou cinco cantos
Mas os espaços entre as coisas, especificamente entre os seres,
que é o espaço que se transfigura em tempo, Ute.
E tempo é poesia,
E é também silêncio.
(Fonte: Folha de São Paulo, 14.01.2019)
Do livro: Essa Música Não é Minha Ed.Quelônio, breve nas livrarias
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