Drummond
repetiu a mesma coisa no seu poema “as sem-razões do amor”. É possível
que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido,
pois as coisas do amor circulam com o vento. “Eu te amo porque te amo…” – sem razões… “Não precisas ser amante, e nem sempre saber sê-lo”.
Meu
amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fossem
assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e
explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria
como a flor arrancada da terra.
“Amor é estado de graça e com amor não se paga.”
Nada mais falso do que o ditado popular que afirma que “amor com amor
se paga”. O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te
devo. Nada me deves. Como a rosa floresce, eu te amo porque te amo.
“Amor
é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor
foge a dicionários e a regulamentos vários… Amor não se troca… Porque
amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo…”
Drummond
tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados
acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não
estar apaixonado (o que é uma pena…), suspeito que o coração tenha
regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem
disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas
numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua estranha
o próprio Drummond tinha conhecimento e se perguntava: “Como
decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha escrita
interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada
amanhecer me dá um soco.” O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá?
Ao
apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a
entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta
proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o
paraíso se perdeu: quando o amor – frágil bolha de sabão -, não contente
com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber.
O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das
suas razões. Kierkergaard comentava o absurdo de se pedir dos amantes
explicações para o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma
resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o
seu amor – sem explicar. E eles falarão por dias, sem parar…
Mas –
eu já disse – não estou apaixonado. Olho o amor com olhos de suspeita,
curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao contrário
de Drummond, as cem razões do amor…
Vou a Santo Agostinho, em
busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto de um velho que
meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente aí se encontre
a análise mais penetrante das razões do amor jamais escritas. E me
defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais fazer: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando te amo?”
Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela
um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante
está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras de Hermann
Hesse, “o que amamos é sempre um símbolo”. Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra.
Variações
sobre a impossível pergunta: Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu
amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece
ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto
se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes
fugidios…Como Narciso, fico diante dele… “No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura…” (Cecília Meireles). Por isto te amo, pelos peixes encantados…
Mas
eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam. Escondem-se. Zombam
de mim. Deslizam entre meus dedos. Eu te abraço para abraçar o que me
foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de os possuir. Tu és o lugar
onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, sem razões,
desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a Virgem Bendita. Mas, por
ser graça, sem razões, da mesma forma como desceu poderá de novo partir.
Se isto acontecer deixarei de te amar. E minha busca recomeçará de
novo…
Esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se
recusa a saber que o rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o
obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma
outra coisa. “O amor começa por uma metáfora”, diz Milan Kundera. “Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.”
Temos
agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce, vive e
morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante pensou ver
no rosto da amada…
Fonte:Revista Prosa Verso e Arte
Imagem: Pinterest
Comentários
Postar um comentário
comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.