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Guriatã Um Cordel Para Menino, Marcus Accioly






XXI
do trem-de-ferro

Quem grita na noite?

Não vejo ninguém,
é o eco do grito
do apito do trem,
é a boca-da-noite
que grita também,
é o eco do eco
que ecoa no além.

Quem grita na noite?

Não vejo ninguém,
é o grito da ponte
debaixo do trem,
é o vento que chora
por morte de alguém,
é o coro das almas
que dizem amém.

Quem grita na noite?

Não vejo ninguém,
é a boca-do-túnel
na frente do trem,
é o grito sem grito
de um eco que vem
dos montes que aos montes
ecoam mais cem.

Quem  grita na noite?

Não vejo ninguém,
é o sonho-barulho
das rodas do trem,
é a luz de uma estrela
que tange belém
no sino-silêncio
que a noite não tem.

Quem grita na noite?

Não grita ninguém,
é o trem dos fantasmas
nos trilhos sem trem,
é a voz dos dormentes
que às vezes contém
o grito da vida
que a morte detém.


.







LXIX

— A ILha é bela
dela eu fui filha
trilha por trilha
trilhei por ela
quando era aquela
espiga-de-ouro
que o vento louro
me havia as queixas
entre as bochechas
feito um besouro.

Fui sem partir
vim sem voltar
(neste lugar
ficar é ir)
pude seguir
graças à brisa
que aqui desliza
e às cabras-cegas
curva as bonecas
penteia e alisa.

Do Sul ao Norte
Oeste a Leste
a Ilha veste
sua cor forte
de um verde corte
dágua do mar
e sobre o ar
pesa um céu nu
que é tão azul
de se chorar.

Além das canas
seus altos mastros
tocam nos astros
que têm pestanas
crescem lianas
da terra aos sóis
e entre cipós
sobem os pensos
jardins suspensos
de girassóis.

O tempo gira
pelo contrário
(ai, mundo-vário
ai, mundo-vira)
nada é mentira
tudo é verdade
quando é de tarde
o galo canta
e o sol levanta
com a claridade.

Mas quanto ao Bicho
que dizer dele?
— Sou eu ou ele
encolho ou espicho
no meu capricho
meio-animal.
— Ele é fatal
mas nesta Ilha
toda a luz brilha
contra o seu mal.




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