A mudança foi
repentina! As estrelas desapareceram bruscamente da noite. Saindo não sei
donde, nuvens, cada vez mais negras, amontoavam-se num canto e acabaram por
tomar todo o céu. Negror. Então, veio o vento e sacudiu o ar estático ,
abafado, vergou as árvores, bateu janelas na vizinhança, trouxe gritos
distantes para meus ouvidos inquietos. Levantou-se poeira nas ruas, rodopiou,
subiu, entrou pelas persianas sujando os móveis.
Mamãe, aflita, que estava na hora da poção,
chegou como uma sombra, cerrou as persianas, mas o vento era sutil e
insinuando-se por frestas despercebidas, balançava da mesma forma as
bambinelas.
- As bambinelas estão dizendo adeus!
Não sei como me acudiu logo o pensamento
estranho: As bambinelas estão me dizendo adeus! Ou estarão me chamando? Sim, é possível que estejam. Mas para onde? Sinto-me fraco,
uma dormência espetante como milhões de alfinetes paralisa as minhas pernas. E
elas continuam a acenar: Vem!
Embala-me, monótono, o tique-taque do relógio
na sala onde minha irmã pedia a São Bento para cortar a perna do vento, que eu
podia piorar.
E a febre na mesma. Trinta e sete e seis.
E a tosse. O peito doendo sempre, sensação angustiosa de asfixia – o teto
caindo sobre mim, me oprimindo, me esmagando. Poderia fugir, mas a dormência,
que me prendia as pernas, invadiu-me o corpo agora e me prostra incapaz.
- Está melhor?
Mamãe dobrou-se sobre minha face num beijo
longo, afagou a minha barba crescida. Seus cabelos grisalhos roçaram-me a testa
seca.
-Estou. Quero dormir.
Saiu na ponta dos pés, depois de compor o
lençol que me cobria, ficou na sala, folheando o jornal, fingindo que lia. Mina
correu para o quarto dos fundos, o feio, com papel vermelho, manchado de
umidade, se esbeiçando pelos cantos, e a janela estreita que dava para a área
onde a pitangueira definhava. Chorar? O vento chorava, também, no jardim
despetalado, nos telhados, nas árvores sacudidas na rua. Chiii – eram as folhas
se arrastando, secas, na calçada. Pedir? Teresinha de Jesus, no oratório branco
da maninha, não fazia mais milagres. Estava surda a todas as orações. Surda? Não. Era o vento, o vento maldoso, com
certeza, que levava todas as palavras boas para as espalhar à toa pelas ruas
sem ninguém.
A febre se elevou um pouco mais, o que é
natural. Talvez seja impressão, apenas.
Se pusesse o termômetro, lá viria o seu refrão: trinta e sete e seis.
Mas para que aquele abajur colorido, azul, rosa e os bichos bordados em preto?
Que inutilidade! Nem era bonito ao menos... Mas se ele crescesse como os gatos,
as árvores e as crianças? Ficasse grande, imenso, e cobrisse todo o mundo? E fosse endurecendo, virasse bronze de tão
duro e cantasse como um sino? Cantou! Ele cantou! Não. Foi o relógio.
-Que horas são?
- Sete e meia. Está sentindo alguma coisa,
meu filho?
- Nada
Nada mesmo. Que tranquilidade senti me
invadir, que silêncio pareceu se fazer. Até o mosquito sossegou.
- Tão cedo...
Tomara o leite às cinco e meia. Não o sentia
mais no estômago e só se passaram duas horas?
Não... Aquele relógio estava ficando velho, caduco, não regulava mais.
Forçosamente que era mais tarde. Ninguém passa na rua...
Calma imensa. Nem o vento lá fora
assobiava mais. Sete e meia.
E um silêncio
na casa.
Quantos anos tinha o relógio? Quando era
menino, já existia, no mesmo lugar, por cima do aparador, e já ia para os vinte
e dois anos, uma criança ainda, diziam, e no entanto sentia-me velho de tanto
sofrer.
Pensei no tempo do futebol na rua –
lampião era o gol, a meninada convencidíssima. O Julinho ostentava chuteiras Atlas, invejadíssimas pelas travas em rodelas; o Zé Maria agora era
soldado e uma vez viera visita-lo: estava achando a vida difícil, tinha medo de
ficar desocupado, sem casa, sem dinheiro, já pensava em engajar. O Russo, filho do quitandeiro, tinha morrido
do peito. Os outros se perderam por este mundo. Ah! E a escola pública! ...
Dona Maria José, a professora se casara; e aquela menina! ... Loura! Loura! Tão
loura! ... Lourdes... Perdera o seu retratinho, perdera-a também... O pai dela
bebia, vivia cambaleando nas esquinas do bairro, batia-lhe. Era dócil,
tristonha, trazia-lhe flores, dizia-lhe que ele era o seu amor, tinha a boca
carnuda e cor de sangue, um contraste flagrante com o rosto pálido. Depois, os
exames na Faculdade, o velho professor condescendente, o porteiro filante e os
cadáveres.
Às oito horas em ponto, senti-me molhado,
depois dum rápido acesso de tosse: era sangue. Sangue, mais sangue. Morri. Na
casa toda, continuava o silêncio.
Na escrivaninha aberta, folhearam as
minhas páginas. Poeta? Ora! ... Leram surpreendidos. Elogios. As velas queimando
em volta de mim, as flores cobriam o meu eito, sem pressão, descarnado, mas eu
não sentia os perfumes.
- Quem diria, hem?
- É mesmo.
- Tão bom! ... Tão simples!...
Contavam fatos:
- A última vez que que o vi...
- “ A noite é assim: silenciosa, fria.” Bonito
este poema! – Cercaram o Souza que lia, o papel suspenso enfaticamente das mãos
gordas. “ Um cheiro de suspeita na aragem traiçoeira, onde a trepadeira,
branca, se reclina.” Lindo, sim!
Eurico aprovava só com a cabeça.
- “Os pirilampos todos se sumiram.”
Antônio não compreendia nada. Os
pirilampos se sumiram? Todos? Que diabo!
- “ Só ficaram os grilos no jardim,
cantando para as estrela indiferentes.”
- Admirável! Admirável!
Eu os lia por dentro devassando-lhes
todos os pensamentos; cada rosto era
para mim uma janela aberta; bastava me debruçar um pouco e toda a casa se me
mostrava.
Luís, sempre desconfiara dele, namorava o meu
Larousse na velha estante desarrumada, mas haveria de passar bastante lisol nos
volumes porque aquilo pegava um visgo.
Minha irmã inexperiente, minha mãe
imprestável, atirada na cama numa crise violenta de nervos, que longe de
excitá-la, prostrara-a inerte, sem ação, como morta, foi Seu Cardoso –
aborrecido, mas que se há de fazer? – que tratou de tudo, com gorjetas
somítegas para o velhote da Santa Casa.
A primeira pá de cal foi do Oliveira – tão
engraçado o Oliveira! – após a despedida de amigo entre caras enfastiadas.
Queixava-se amargamente, com seus botões, daquela vasta estopada – as lágrimas,
o enterro atrasadíssimo, ele sem jantar até àquela hora; imaginava já uma tuberculose
também, proveniente duma gripe seriíssima apanhada naquela maldita tarde,
gélida, úmida, terrível. A última foi a do Mauro, que sempre se distraíra admirando as coroas, lendo
fitas: “Saudades da Dondoca” ( a prima loura que morava no Méier), “Seus
colegas do 4º ano”, a do Seu Ramalho da farmácia, enorme, de dálias, humilhando
todas as outras, mesmo aquela pequena, tão simples: “Tua mãe e tua irmã”.
Quando tudo acabou, a cova cheia, os passos
em cima da terra – bem se ouviam – afastando, senti-me livre, só, aliviado.
Enfim! Uma ânsia, porém, sem limites se apossou de mim, agora que eu via tudo,
pois vi minha casinha humilde na Rua Dona Constança, deserta de todos os meus
sofrimentos. Vi e quis voltar para lá, para o meu desespero, para a minha dor,
a febre, o peito aflito, a asfixia e esperar a hora da poção – esperança,
esperança! Que minha mãe vinha dar, os olhos úmidos.
REBELO,
Marques, Contos Reunidos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
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