Pular para o conteúdo principal

O Intérprete, Moacyr Scliar

                                      
    Sou recebido pela empregada que, em silêncio, me conduz à sala de jantar. Já estão sentados à mesa, o pai, a mãe,o filho. Mas ainda não começaram a refeição; esperam-me. Estou atrasado. Como não tenho carro, vim a pé, demorei-me.
    À minha chegada, erguem-se vivamente a cabeças. A do pai, grisalha. A da mãe, grisalha também, apesar da tintura. E a do rapaz, raspada ( é, pelo que sei, uma forma de protesto). Os óculos - os três usam - cintilam à luz das fortes lâmpadas, ocultando os olhos e a expressão neles existente, qualquer que seja: raiva, ou medo, ou mágoa, ou mesmo esperança.
   Levantam-se, o pai e a mãe; vêm ao meu encontro. Trocamos cumprimentos e comentários sobre o tempo. - O inverno está terrível - diz ela -, deixa a gente doente. - Concordo; está com os olhos congestos; pode ser choro, o que me causa pena - afinal, somos parentes, primos em segundo grau. Mas pode ser também que esteja simplesmente gripada; não se deve dramatizar a vida, não em demasiado, ao menos.
     Dou boa-noite ao rapaz, que resmunga qualquer coisa e continua sentado, imóvel. Coloco-lhe a mão no ombro: trata-se de um gesto amistoso.
     Uma campainha ressoa na copa, que fica ao lado. O botão está  sob a mesa; a mãe, sentando-se, simplesmente calcou-o com o pé, chamando assim a copeira. Vivem com todo conforto; o pai próspero empresário, pode dar à família uma vida de comodidades, de luxos, mesmo. A empregada que surge à porta usa touca e avental engomado; e a sopeira que traz é de porcelana. Mas quando o pai sorve a primeira colherada, o barulho que faz trai sua origem humilde, que ele, aliás, não nega: "Comecei do nada", costuma dizer, orgulhoso. O filho, porém, faz uma careta de desgosto. Os modos do pai incomodam. Não gosta de burguês grosso. 
     - Está boa a sopa - comento, jovial. Tenho 42 anos, vivo sozinho (consideram-me um solteirão, ainda que simpático), mas mesmo assim conservo o senso de humor e sei  encarar a vida com um olho irônico e outro terno,com um olho alegre  e outro sereno. Sou um homem ponderado; estes dois   - meu primo e sua mulher - sabem disso. Tanto que me convidam para esses jantares. Não permito, e por isso sou importante para eles, que o silêncio baixe sobre esta mesa. O silêncio a envolvê-los, como um magma espesso e escuro? De forma alguma. Sou professor de geologia  ( de momento desempregado; este jantar, aliás, vem muito bem, é a primeira refeição digna desse nome em muitos meses); mas sei que essas coisas fazem mal às pessoas. Antes que a sopa termine, emito ainda três comentários:
     - sobre um filme recentemente exibido em cinemas da capital, mostrando o lado faceto da vida;
     - sobre as últimas partidas do campeonato de futebol;
     - sobre um aparelho de som, que conjuga rádio, toca-discos e gravador ( e que espero ganhar deles de aniversário).
     Ao primeiro comentário o rapaz reage apenas erguendo a cabeça do prato, sem demonstrar maior interesse; ao segundo, idem, mas ao terceiro sorri, porque conto minhas grotescas experiências com o meu atual e precário aparelho de som - eu querendo ouvir FM, só conseguia acionar o braço do toca-discos que ficava a gingar de um lado para outro, como um peru doido.
     - Peru doido! - repito, golpeando a mesa e gargalhando. O rapaz sorri.
     - Vem a salada e, durante um minuto - mas não mais que isso - mastigamos em silêncio as folhas de alface e as rodelas de pepino. O molho é notável , suave e ao mesmo tempo picante; e eu digo: - O molho está notável, prima - Sorri, grata.
     Vem o prato principal: rosbife, guarnecido de petits-pois, cenouras e batata-palha, tudo coberto com molho remolado. Antes que eu me sirva, o pai inclina-se em minha direção: - pergunta para ele - murmura - como é que estão as coisas.
     Chegou o momento. O momento que justifica o almoço.
     Ponho de lado garfo e faca, apanho o guardanapo. Depois de  limpar cuidadosamente  a boca, volto-me para o rapaz.
     - Então, rapaz, como é que estão as coisas?
     Não me olha. Está cortando a carne e é cortando a carne que me responde: - Tudo bem, tudo no mesmo à empregada, embora esta não esteja presente.
     O pai torna a inclinar-se para mim. - Pergunte a ele - diz em voz tensa, bem audível - se não mudou de ideia.
     A mim parece que não, que o rapaz não mudou de ideia; mas não me compete ter opinião. O primo me pede que eu pergunte, portanto pergunto.
     Nem me responde, mas é óbvio que está decidido. Vai partir. Breve. Amanhã. Ou hoje. Talvez vá depois do jantar. Talvez nem termine de jantar.
     O pai está apavorado. Não sabe o que aconteceu, nem o que está acontecendo, nem o que acontecerá. Não sabe nada. Não sabe nem falar. Trêmulo torna a inclinar-se para mim: pergunte o que ele quer - sussurra - para mudar de idéia.
     Tomo um gole de vinho, pouso o cálice. Não faço minhas as palavras do dono da casa; na verdade, acho-as inconvenientes. A proposta pode até ser boa, mas a forma de apresentação é totalmente incorreta, parece coisa de corrupto. Sei fazer melhor.
     - Quem sabe - digo em tom casual - você pensa melhor e muda de idéia? 
     Espero uns segundos e acrescento:
     -Quem sabe existe alguma coisa que pode te fazer mudar de ideia?
     - Merda! - exclama, atirando o guardanapo para o lado e levantando-se:
     - Será que a gente não pode comer em paz?
     Aí acontece o pior: o pai e a mãe se levantam e põem-se a gritar, e a chorar, ela a puxar os cabelos como louca. Durante uns segundos o filho olha-os, cheio de raiva, e de desprezo, e de amargura. Depois sai.
     arrasados, os dois se deixam cair em suas cadeiras. Olha-me, o pai, entre desesperado e acusador: por que não faço alguma coisa? Nada posso fazer, agora que o rapaz se foi; no entanto, quero mostrar-lhes que a vida continua; por isso, corto um pedaço de carne, levo-o à boca, mastigo-o com vontade.
     - Está ótimo o rosbife! - digo, a boca cheia. Se bem que falta alguma coisa, heim? - Falta alguma coisa. Há um certo vazio dentro de mim que não pode ser preenchido nem por carne nem por petits-pois nem por vinho, mas sim por essa específica coisa, tão simples e gostosa, cujo nome agora me foge. Minha boca se abre, mas nenhum som sai dela; levanto a mão, gesticulo - e nada, não me ocorre o nome dessa coisa tão boa, tão banal, essa coisa cuja imagem me está presente: casca levemente torrada, miolo macio, cheiroso, quentinho. Mas Deus existe: de repente minha mente clareia, e lembra a palavra, que então grito,alegre, eles a me olharem espantados, como se se tratasse daquela língua  dos amarelos, o chinês: 
     - Pão!

       Por fim, uma situação em que a família vive uma melancólica fantasia comum, uma miniloucura a três.

( O Texto, ou: A vida)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard