Toda vez que mamãe vai tomar banho e me esquece aqui fora, fico deitado bem juntinho à porta, esperando ela acabar. Fecho os olhos mas não durmo, só finjo. Assim, quando minha irmã passa, ela não esfrega a minha cabeça nem aperta as minhas bochechas, e olha que nem as tenho. Pra falar a verdade, nunca vi um cãozinho ter bochechas, mas a doida da minha irmã sempre diz que tenho, e que nada é melhor do que apertá-las. Isso tudo me confunde um pouco, mas tudo bem. Enquanto fico quietinho aqui, posso ouvir o barulhinho da água do chuveiro, de que eu tanto gosto. Isso não quer dizer que eu goste de tomar banho. Aquele tanque e a água gelada em nada me atraem. Mas confesso, tenho vontade de experimentar um banho quentinho, de chuveiro.
Papai chegou, já ouvi o barulho que o carro dele faz quando entra na
garagem. Mas vou continuar aqui, não saio daqui por nada, afinal, mamãe é
mamãe. É ela quem cuida de mim. Me leva na rua todos os dias à tarde,
põe a minha comida no pratinho onde colou uma foto minha, me leva pra
cortar todos estes pêlos que me enchem de calor. Tenho que confessar uma
coisa daquele lugar. Eles cortam os pêlos, dão banho, cortam as unhas e
ainda me enchem de talco. Sempre antes que mamãe chegue para me buscar,
botam uma gravatinha escrita “Binho”. Aquilo é um tormento. Sem falar
nos outros cachorros e gatos que ficam lá junto comigo. Outro dia
apareceu uma mulher com uma tartaruga. Queria que dessem banho e
passassem perfume na coitada. Eita gente doida. Quem entende os humanos?
Não disse que era o carro do papai? A chave já está rodando na porta da
cozinha. Ai meu Deus! Tenho que ir “fazer festa” pra ele. Mas vou
abandonar meu posto. E se mamãe sair do banho? Vou rapidinho. Vou num pé
e volto no outro. Vai dar tempo. Faço uma recepção mais rápida hoje. É
isso. Vou lá. Confessarei outra coisa – hoje estou propício às
confissões -, mas que isso não saia daqui, em hipótese alguma. Todos
nós, cachorrinhos de todos os tipos e tamanhos, mas principalmente os
chamados “de estimação”, introduzimos em nossas leis – um dia falo
melhor sobre o livro das leis da gente – o mandamento “fazer festa para o
dono”. O que eu quero dizer é que este costume não é tanto pelo apreço
que temos por eles. Resolvemos padronizar este “ritual” há muito tempo
porque queríamos ser vistos como um amigo fiel. Conseguimos. Mas, mesmo
assim, continuamos fazendo. Isso agrada aos humanos, não custa massagear
um pouquinho o ego deles. Deixemos assim mesmo.Nossa! Fui rapidinho mesmo. Apesar do corredor enorme, está tudo certo. Mamãe só desligou o chuveiro agora e eu já estou aqui. “Abre mamãe, abre!”. Oba. Abriu. Nada melhor do que essa hora. Estou tão feliz. Já sei o que vai acontecer. Mamãe vai sair do banheiro, vai até o outro, que fica no quarto dela – ela sempre toma banho no banheiro das minhas irmãs – e pegará um daqueles. Hummm! Que delícia! Minha boca está salivando. Pronto. Ela saiu, pendurou a toalha, disse “Vem Tico” – este é um dos meus apelidos, tenho mais 37 pelo que contei até agora, mas disso falo depois. Já abriu a caixinha. Pegou dois. Estou ansioso. Colocou no ouvido, lá dentro. De novo. Passou mais vez. Pegou o outro e limpou bem o ouvido cheio de cera. “Não mamãe, não jogue aí”. Que droga! Jogou na lixeira em que eu nunca consigo pegar.
*Ariane Bomgosto é editora da Revista América e jornalista.
Quem narra a crônica?
ResponderExcluirBom dia caro(a) desconhecido(a), sugiro que releia o texto. Tenho absoluta certeza de que você é capaz de saber quem é o narrador. Abraço.
ExcluirInteressante
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