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Hoje é dia de: A Matemática do Mais Forte, Malba Tahan

Chacal e leão na natureza
     O leão, o tigre e o chacal abandonaram, certa vez, a furna sóbria em que viviam e saíram, em peregrinação amistosa, a jornadear pelo mundo, à procura de alguma região rica em rebanhos de tenras ovelhinhas.
     Em meio de grande floresta, o temível leão que chefiava, naturalmente, o grupo, sentou-se já fatigado, sobre as patas traseiras, e, erguendo a cabeça enorme, soltou um rugido tão forte que fez tremer as árvores mais próximas.
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     Ao cair da tarde, guiados pelo chacal, chegaram os viajantes ao alto de um monte, não muito elevado, donde se descortinava uma pequena e verdejante planície.
     No meio dessa planície achavam-se descuidados, alheios ao perigo que os ameaçava, três pacíficos animais: uma ovelha, um porco e um coelho.
     Ao avistar a presa (...) o leão rosnou:
     - Ó tigre admirável! Vejo alí três belos e saborosos petiscos (...) Tú, que és vivo e esperto deves saber, com talento, dividir três por três. Faze, pois, com justiça e equidade, essa operação fraternal: dividir três caças por três caçadores!
     Lisonjeado com semelhante proposta, o vaidoso tigre (...) assim respondeu:
     - A divisão que generosamente acabais de propor, ó rei, é muito simples e pode fazer-se com relativa facilidade. A ovelha que é o maior dos três petiscos, o mais saboroso e, sem dúvida, capaz de saciar a fome de um bando de leões do deserto, cabe-vos de pleno direito. Aquele porquinho magro, sujo e despeciendo, que não vale uma perna da bela ovelha ficará para mim, que sou modesto e com bem pouco me contento. E, finalmente, aquele minúsculo e desprezível coelho, reduzidas carnes, indigno do paladar apurado de um rei tocará ao nosso companheiro, o chacal, como recompensa pela valiosa indicação que, há pouco, nos proporcionou.
     - Estúpido! Egoísta! rugiu o pavoroso leão, tomado de fúria indescritível. Quem te ensinou  a fazer divisões dessa maneira, imbecil?  Onde já viste uma partilha de três por três ser resolvida desse modo?
     E, erguendo a pesadíssima pata, descarregou na cabeça  o  desprevenido tigre tão violenta pancada que o atirou morto a alguns passos de distância.
     Em seguida, voltando-se para o chacal, que assistira estarrecido àquele trágico desfecho da divisão de três por três, assim falou:
     - (...) Estás vendo, amigo chacal, aqueles três apetitosos aninimais: a ovelha, o porco e o coelho? Pois bem: vais dividir os três por dois! Vamos fazer logo os cálculos pois preciso saber qual é o quociente exato que a mim cabe.
    - Não passo de um humilde e rude servo de Vossa Majestade, ganiu o chacal, em tom humílimo de respeito. Cumpre-me, pois,obedecer cegamente à ordem que acabo de receber. Vou, como se fora um sábio geômetra, dividir aqueles três animais por nós. A divisão matematicamente certa e justa é a seguinte: a admirável ovelha, manjar digno de um soberano, cabe aos vossos reais caninos, pois é indiscutível que sois o rei dos animais; o belo bacorinho deve caber, também, ao rosso real paladar, visto dizerem os entendidos que a carne de porco dá mais força e energia aos leões; e o saltitante coelho, com suas longas orelhas, deve ser também, por vós saboreado a título de sobremesa, já que aos
reis, por lei tradicional entre os povos, cabe sempre, como complemento dos opíparos banquetes os manjares finos e delicados.
     - Ó incomparável chacal! - exclamou o leão encantado com a partilha que acabava de apreciar. como são harmoniosas e sábias as tuas palavras! quem te ensinou esse artifício maravilhoso de dividir, com tanta perfeição e acerto, três por dois?
     - A patada com que vossa justiça puniu, há pouco, o tigre arrogante e ambicioso, ensinou-me a dividir, com segurança, três por dois, quando desses dois, um é o leão e o outro é o chacal! Na matemática do mais forte, penso eu, o quociente é sempre exato, e ao mais fraco, depois da divisão, nem o resto deve caber!
     E, desse dia em diante, fazendo sempre divisçoes dessa ordem, na mais torpe sabujice, viveu o astucioso chacal a sua vida de bajulador vil, a regalar-se com os sobejos que lhe deixava o leão.

(Nota da blogueira: o conto foi reduzido sem prejuizo para seu conteúdo)

Vamos aprender?
Para saber sobre o autor clique aqui.  Para saber sobre as palavras destacadas:

Furna: caverna, gruta.
Jornadear: caminhar, andar ( fazer uma jornada)
Despiciendo: desprezível, sem valor.
Equidade: justiça
Bacorinho: filhote de porco
Opíparo: abundante
Torpe sabujice: vergonhosa serviência
Sobejos: restos


Vamos perguntar?
O chacal tinha outra opção?


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