Recado de Primavera.
Zuenir Ventura
Meu caro Rubem Braga:
Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a primavera chegou. Na véspera da chegada, não sei se lhe contaram, você virou placa de bronze, que pregaram na entrada do seu prédio. O próximo a ser homenageado é seu amigo Vinicius de Moraes, e é essa lembrança que me faz parodiar o “Recado de primavera”, que você mandou ao poeta quando ele se tornou nome de rua.
Sua crônica foi lida na inauguração da placa, durante uma cerimônia rápida e simples, para você não ficar irritado. A idéia foi da Confraria do Copo Furado, um alegre clube de degustadores de cachaça que não existia no seu tempo. Antes que alguém dissesse “mas como, se Rubem só tomava uísque!”, o presidente da confraria, Marcelo Câmara, se apressou em lembrar que Paulo Mendes Campos uma vez revelou que o maior “orgasmo gustativo” do velho Braga, na verdade, foi bebendo uma boa pinga num boteco do Acre. Paulinho, que deve estar aí a seu lado, só faltou dizer que você sempre foi um cachaceiro enrustido.
Temendo uma bronca sua, Roberto, seu filho, fez tudo na moita: não avisou a imprensa e não comunicou nada a nenhuma autoridade ou político. De gente famosa mesmo só havia Carlinhos Lyra e Tônia Carreiro. Aliás, sua eterna musa declamou aquele soneto que você ficou todo prosa quando Manuel Bandeira incluiu numa antologia, lembra-se?
Tônia se esforçou para não se emocionar, e quase conseguiu. Mas quando aquela luz do meio-dia que você tanto conhece bateu nos olhos dela, misturando as cores de tal maneira que não se sabia mais se eram verdes ou azuis, viu-se que estavam ligeiramente molhados, mas todo mundo fingiu que não viu.
Depois da homenagem, subimos até a cobertura. Não sei se você sabe, mas Roberto levou uns quatro meses reformando o terraço. Agora pode chover à vontade que não inunda mais. O resto está igual: as paredes cobertas de quadros e livros, o sol entrando, a vista do mar. Quando chegamos à varanda, achamos que você estava deitado na rede.
O pomar, mesmo ainda sem grama, está um brinco e continua absolutamente inverossímil. “Como é que ele conseguiu plantar tudo isso aqui em cima?”, a gente repetia, fazendo aquela pergunta que você ouviu a vida toda.
Os dois coqueiros que lhe venderam como “anões” já estão com mais de três metros de altura. As duas mangueiras, depois da poda, ficaram frondosas e enormes, uma beleza. Vi frutinhas brotando nos cajueiros, nas pitangueiras e nas jabuticabeiras, pressenti promessas de romãs surgindo e esbarrei em pés de araçá e carambola. Agora, há até um jabuti.
As palmeiras que ficam no canto, se lembra?, estão igualmente viçosas. Roberto jura que não é forçação retórica e que de madrugada vem um sabiá laranjeira cantar ali, diariamente, acordando os galos que deram nome ao morro que fica atrás. Assim, sua cobertura é a única que tem palmeiras onde canta o sabiá. (Roberto faz questão de dizer “a” sabiá, em homenagem ao Tom). Há um outro mistério. Maria do Carmo, sua nora, conta que o pastor alemão Netuno, de sobrenome Braga, que você nem conheceu, pegou todas as suas manias: toma sol no lugar onde você gostava de ler jornal de manhã, resmunga e passa horas sentado, com as duas patas pra frente, apreciando o mar. A diferença é que dessa contemplação ainda não surgiu nenhuma crônica genial.
Mas muita coisa mudou, cronista, nesses 16 anos. As “violências primaveris” de que você falava na sua carta a Vinicius não são mais o “mar virado”, a “lestada muito forte” ou o “sudoeste com chuva e frio”. Não são mais licenças poéticas, são violências mesmo.
Para você ter uma idéia, a primavera desse ano foi como que anunciada por um cerrado tiroteio bem por cima de sua cobertura: os traficantes do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho voltaram a guerrear. Você deve ter visto aí de cima os tiros riscando a noite, luminosos, como na guerra do Golfo. Estamos vivendo sob fogo cruzado. Ainda bem que nenhuma bala perdida atingiu seu apartamento. Por milagre, aquela parede de trás ainda está incólume.
O tempo vai passando, cronista. Chega a primavera nesta Ipanema, toda cheia de lembranças dos versos de Vinicius, da música de Tom e de sua doce e poética melancolia. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui - a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. E temendo, como todo mundo, as balas perdidas. Adeus.
Este é um dos textos de Zuenir que ele mesmo escolheu como dos que mais gosta. Está no livro: Crônicas de Um Fim de Século( Ed. Objetica R$41,90)
Os demais preferidos são:
Chico Mendes Um idoso na fila do Detran
Peregrinos do sertão
Um grito contra a razão cínica
Uma lição de vida
A psicanálise da tortura
O ano do desacordo
Gênio da raça
Eu fui um homem qualquer
Portugal prova a liberdade
Da ilusão do poder a uma nova esperança
O vazio cultural
Jango transfere viagem e não sabe o que fazer
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