Questionários
Rachel de Queiroz
Começou o ano de 1959, estava tardando: lá vem o amigo dos questionários (que se assina J. A. Côrrea, de São Paulo). Êle insiste porque sabe que o êxito é certo, os leitores ficam alvoroçados muita gente se interessa por responder também, ou discutir as respostas dadas. Acho que é coisa da natureza humana isso de gostar de ser interpelado e responder, explicar-se, nem que seja para sofrer. Não fôsse assim, como é que os entrevistados em certos programas de televisão se prestariam a expor-se num verdadeiro pelourinho, respondendo a indagações que, ou são indiscretas, ou são descorteses, ou são capciosas, ou são maldosas - e, invariàvelmente, mesmo quando formuladas por amigos, são perguntas de inimigo? Note-se que não censuro os produtores dos programas. Estão no seu papel de bons repórteres, tratando de tirar o máximo de informação e novidades dos seus entrevistados. O que me admira é a cooperação das “vítimas”. Porque se prestam ao interrogatório a trôco de nada - não é por obrigação, não é por dinheiro. Talvez porque o homem, na sua essência, é mesmo um bravo, um lutador, e gosta de sentir o desafio, descobrir adversários e meter-se com êles. Assim como os campeões da Idade Média que arriscavam a vida em torneios: o seu principal atrativo era mesmo sentir a presença do perigo. Eu, porém, que sou uma fraca mulher, confesso que jamais me entregaria àquelas feras. Nem por ouro, nem por prata, nem por sangue de Aragão. Vou-me ficando por estes inocentes questionários de leitores, que satisfazem de algum modo o nosso instinto de duelo — mas duelo ameno, daqueles que têm de acabar antes do primeiro sangue...
Mas eis as perguntas de J. A. Côrrea:
1) - Vocês (refiro-me a certo grupo brasileiro de opinião, ao qual você pertence) têm-se mostrado ùltimamente muito pessimistas. Que querem que se faça? Que desista de tudo inclusive de lutar, de casar e ter filhos e de acreditar no futuro do Brasil?
Resposta: Deus me livre! Aliás nego que nós andemos pessimistas. As coisas é que andam ruins. E a prova de nosso otimismo é que, apesar de tudo, o conselho que lhe dou é que continue a lutar, a ter filhos, e a acreditar no futuro do Brasil. Embora eu não saiba bem o que é que você chama o "nosso" Brasil. Será êle o nosso mesmo, ou o "dêles"?
2) - E, falando em pessimismo, se nada vale a pena, por que é que vocês ainda escrevem?
R: Já neguei o pessimismo. Quanto ao motivo para continuar escrevendo, só posso responder por mim: escrevo porque é êsse o meu ofício, o meu ganha-pão. Ah, se eu mandasse na minha sorte, seria outra coisa muito diferente. Dona de restaurante, atriz, ou - sonho dos sonhos - uma matriarca fazendeira, igual à minha avó Rachel, cheia de filhos e netos, no sertão do Ceará...
3) - Você se interessa por luniks, explorers, UFO etc?
R: Muito. Mas tenho um mêdo danado dessas liberdades com o espaço sideral. Se o pessoal lá de cima se aborrece...
4) - Diga a coisa que mais a comoveu, ùltimamente?
R: Uma conversa que tive com a mãe do Tenente Fernando, desaparecido na floresta amazônica.
5) - Que tal o ano literário de 1958?
R: Excelente. Basta citar o novo volume de memórias do grande, não - do imenso Gilberto Amado; o monumental “Fundadores do Império” de Octávio Tarquínio de Souza. E quero dar um lugar especialíssimo às “Florestas” de A. Frederico Schmidt: confissão, depoimento, memória, poesia? - não sei, será isso tudo e mais ainda, sendo igualmente um dos mais altos momentos do poeta.
6) - Fale sôbre política. Nacional?
R: Não falo absolutamente. Não quero me aborrecer nem aborrecer aos outros.
7) - Qual seu candidato à Presidência da República?
R: Ainda estou assuntando. Mas parece que o Jânio é a pedra que rola da montanha. Cada dia aumenta mais.
8) - E política internacional? Nesse terreno, que fato lhe pareceu mais importante, no ano passado e comêço dêste ano?
R: As insurreições coloniais. As lutas raciais na África e no resto do mundo. A crescente derrubada do homem branco e do seu poderio.
9) - Qual será, na sua opinião, o vencedor da guerra fria: Rússia ou Estados Unidos?
R: Você quer respostas ou profecias? Em todo o caso, posso dizer que, na minha opinião, não haverá vencidos nem vencedores. Mesmo que rebente uma guerra de verdade. Ou quem sabe só haverá vencidos?
10) - Se lhe dessem o govêrno do Brasil, que é que você faria?
R: E você acha que alguém iria cometer uma loucura dessas?
Acabou. No mais, desculpem as faltas.
(www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro ) ano 1959
Sublinhado e itálico feitos por mim. O blog manteve a grafia original.
Rachel de Queiroz
Começou o ano de 1959, estava tardando: lá vem o amigo dos questionários (que se assina J. A. Côrrea, de São Paulo). Êle insiste porque sabe que o êxito é certo, os leitores ficam alvoroçados muita gente se interessa por responder também, ou discutir as respostas dadas. Acho que é coisa da natureza humana isso de gostar de ser interpelado e responder, explicar-se, nem que seja para sofrer. Não fôsse assim, como é que os entrevistados em certos programas de televisão se prestariam a expor-se num verdadeiro pelourinho, respondendo a indagações que, ou são indiscretas, ou são descorteses, ou são capciosas, ou são maldosas - e, invariàvelmente, mesmo quando formuladas por amigos, são perguntas de inimigo? Note-se que não censuro os produtores dos programas. Estão no seu papel de bons repórteres, tratando de tirar o máximo de informação e novidades dos seus entrevistados. O que me admira é a cooperação das “vítimas”. Porque se prestam ao interrogatório a trôco de nada - não é por obrigação, não é por dinheiro. Talvez porque o homem, na sua essência, é mesmo um bravo, um lutador, e gosta de sentir o desafio, descobrir adversários e meter-se com êles. Assim como os campeões da Idade Média que arriscavam a vida em torneios: o seu principal atrativo era mesmo sentir a presença do perigo. Eu, porém, que sou uma fraca mulher, confesso que jamais me entregaria àquelas feras. Nem por ouro, nem por prata, nem por sangue de Aragão. Vou-me ficando por estes inocentes questionários de leitores, que satisfazem de algum modo o nosso instinto de duelo — mas duelo ameno, daqueles que têm de acabar antes do primeiro sangue...
Mas eis as perguntas de J. A. Côrrea:
1) - Vocês (refiro-me a certo grupo brasileiro de opinião, ao qual você pertence) têm-se mostrado ùltimamente muito pessimistas. Que querem que se faça? Que desista de tudo inclusive de lutar, de casar e ter filhos e de acreditar no futuro do Brasil?
Resposta: Deus me livre! Aliás nego que nós andemos pessimistas. As coisas é que andam ruins. E a prova de nosso otimismo é que, apesar de tudo, o conselho que lhe dou é que continue a lutar, a ter filhos, e a acreditar no futuro do Brasil. Embora eu não saiba bem o que é que você chama o "nosso" Brasil. Será êle o nosso mesmo, ou o "dêles"?
2) - E, falando em pessimismo, se nada vale a pena, por que é que vocês ainda escrevem?
R: Já neguei o pessimismo. Quanto ao motivo para continuar escrevendo, só posso responder por mim: escrevo porque é êsse o meu ofício, o meu ganha-pão. Ah, se eu mandasse na minha sorte, seria outra coisa muito diferente. Dona de restaurante, atriz, ou - sonho dos sonhos - uma matriarca fazendeira, igual à minha avó Rachel, cheia de filhos e netos, no sertão do Ceará...
3) - Você se interessa por luniks, explorers, UFO etc?
R: Muito. Mas tenho um mêdo danado dessas liberdades com o espaço sideral. Se o pessoal lá de cima se aborrece...
4) - Diga a coisa que mais a comoveu, ùltimamente?
R: Uma conversa que tive com a mãe do Tenente Fernando, desaparecido na floresta amazônica.
5) - Que tal o ano literário de 1958?
R: Excelente. Basta citar o novo volume de memórias do grande, não - do imenso Gilberto Amado; o monumental “Fundadores do Império” de Octávio Tarquínio de Souza. E quero dar um lugar especialíssimo às “Florestas” de A. Frederico Schmidt: confissão, depoimento, memória, poesia? - não sei, será isso tudo e mais ainda, sendo igualmente um dos mais altos momentos do poeta.
6) - Fale sôbre política. Nacional?
R: Não falo absolutamente. Não quero me aborrecer nem aborrecer aos outros.
7) - Qual seu candidato à Presidência da República?
R: Ainda estou assuntando. Mas parece que o Jânio é a pedra que rola da montanha. Cada dia aumenta mais.
8) - E política internacional? Nesse terreno, que fato lhe pareceu mais importante, no ano passado e comêço dêste ano?
R: As insurreições coloniais. As lutas raciais na África e no resto do mundo. A crescente derrubada do homem branco e do seu poderio.
9) - Qual será, na sua opinião, o vencedor da guerra fria: Rússia ou Estados Unidos?
R: Você quer respostas ou profecias? Em todo o caso, posso dizer que, na minha opinião, não haverá vencidos nem vencedores. Mesmo que rebente uma guerra de verdade. Ou quem sabe só haverá vencidos?
10) - Se lhe dessem o govêrno do Brasil, que é que você faria?
R: E você acha que alguém iria cometer uma loucura dessas?
Acabou. No mais, desculpem as faltas.
(www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro ) ano 1959
Sublinhado e itálico feitos por mim. O blog manteve a grafia original.
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