Correspondência
Rachel de Queiroz
Chega-se de viagem e o amontoado de correspondência nos espera – parece que está crescendo, ou será ilusão de vista, filha do sentimento de culpa? Êsse problema de cartas, para o pobre escritor brasileiro, é dos mais sérios. Respondê-las tôdas seria impossível. E, por outro lado, não há por cá o hábito de encarregar secretários da nossa correspondência particular; a tendência do correspondente seria ressentir-se, ao receber uma folha de papel formal e datilografada por terceiro, em resposta à sua cartinha espontânea e pessoalíssima. Aliás – começa que nem temos secretários. Pelo que sei, só artistas de rádio se podem, entre nós, dar êsse luxo...
Depois – a maioria esmagadora das cartas que recebemos tratam de assunto que secretário nenhum pode resolver: pois, sem exagêro, 90% dos que nos procuram, o seu fim principal é êste: mandar uma amostra do que escrevem e pedir ao jornalista a quem se dirigem uma palavra de incentivo ou de crítica, ou uma promessa de publicação. Peço agora a Deus que me inspire para poder explicar a êsses confiantes amigos e leitores a impossibilidade em que nos vemos para lhes satisfazer os desejos. Dizer-lhes de saída que a crítica literária é atividade muito difícil, muito complexa, que exige não só vocação específica, como conhecimentos muitíssimos especializados. Não pode ser exercida assim de repente, por simples capricho; ou para satisfazer um amigo. O fato de um de nós escrever crônicas que agradem a um ou a outro, ou compor versos, ou inventar histórias, não nos confere automàticamente capacidade e muito menos autoridade para julgar trabalhos literários. Eu, de mim, confesso que a simples página que me manda um candidato a escritor (a menos que seja tão ruim que a evidência salte do papel) deixa-me na maior perplexidade. Tenho mêdo de me enganar, de cometer um dêsses erros-julgamento que talvez possam a vir estragar uma vocação. Duvido do meu juízo, pois, se comigo própria tantas vêzes me engano, e mando para publicação muita coisa que jamais deveria ser posta em papel! Sim, tenho horror a servir de juiz.
Além disso, tivesse eu disposição e capacidade para o ofício, ainda me faltaria outra condição indispensável: tempo. Pois teria que dedicar dias e dias seguidos – dias de que não disponho - para a leitura dos originais e a sua crítica, e mais outros dias para a correspondência com os autores... – e, em que tempo daria eu conta da acumulação variada e enfadonha das tarefas que já é o meu quinhão obrigatório neste vale de lágrimas? Creio que todo mundo sabe que nós, profissionais da pena, trabalhamos para ganhar a nossa vida. Escrever, para nós, é ofício, e ofício penoso. Diàriamente, como uma fera, a dentuça da máquina de escrever está aí para nos devorar o surrado miolo – é o artigo para entrega, é o livro, a peça, a tradução, –- sei lá! Raro, raríssimo o dia em que um compromisso de entrega urgente não nos amarra ao pé do malfadado instrumento – e enquanto os outros tomam banho de mar, ou vão ao cinema, ou batem papo nas livrarias, nós ficamos blá-blá-blá, no teclado, espremendo o juízo, inventando assunto, suando sangue. E assim, por maior boa-vontade que a gente tenha para com os que começam, primeiro temos que enfrentar os nossos dois grandes problemas: tempo e dinheiro. Precisamos de um para ganhar o outro...
Dirão os que querem começar: e a quem nos dirigimos para conselhos, crítica, incentivo? Bem, falando franco, a maioria dos que começam a escrever, precisam mesmo é de um professor. E há muito curso bom de literatura e linguagem espalhados pelo Brasil todo. Críticos, para aquêles que estão em fase mais adiantada, que já estão seguros do que fazem e já se consideram em condições de enfrentar o público, também os temos, dos mais capazes e sabedores. Cada grande jornal ou revista tem o seu crítico oficial, assinando um rodapé ou seção fixa, e revista há, como a nossa irmã “A Cigarra”, que dispõe não apenas de um único crítico, mas de tôda uma equipe, escolhida entre os maiores nomes da especialidade, no País.
Quanto às possibilidades de publicação, em jornal, revista ou livro, isso então é que não depende de nós escribas, de jeito nenhum. Um colaborador, como esta vossa criada, por exemplo, não tem nada, mas nada de nada, com a orientação, direção e publicação da sua revista. Escrevemos em casa, e o portador do jornal nos vem buscar a crônica no dia certo, tôda semana. Só uma vez por mês, no agradável dia de receber senão o vil metal, pelo menos o vil papel-moeda, é que chego até à Rua do Livramento, aproveitando a viagem para visitar e conversar um pouco com os queridos amigos, a bem dizer todos que lá trabalham, benza-os Deus. À direção, ao secretário, às seções especializadas de literatura, é que se devem dirigir os pretendentes, pois só dêles (e seria até intromissão indevida nossa o invadirmos o trabalho de colegas), só dêles depende a aceitação ou recusa de novos colaboradores.
Com os editores de livros, dá-se o mesmo que com jornais e revistas. Cada editor tem o seu corpo de leitores que estuda os originais e escolhe os que merecem publicação. A edição de um livro, hoje em dia, representa grande emprêgo de capital e a gente não pode exigir de um editor amigo que arrisque cem ou duzentos contos num livro, só pelos nossos bonitos olhos, porque nós estamos pedindo. Êles lá dentro, depois de consultada a sua equipe de seleção e suas conveniências, é que podem decidir se tal original interessa ou não.
* * *
Compreendo bem que tudo isso demonstra que cada dia se torna mais difícil aos jovens furar a barreira do desconhecimento. Mas a culpada disso não sou eu, e acho que falar a verdade não aumenta as dificuldades – talvez até facilite. Pode ser duro o que estou dizendo, mas é a realidade. Os moços que não se zanguem conosco, velhos profissionais, por essa recusa que talvez lhes pareça egoísta e desumana – mas o fato é que não está nas nossas mãos resolver o problema dêles. Nós somos uns pobres diabos como tôda gente, estamos muito longe de ser meros e felizes diletantes, que, interrompendo um ócio de comedores de lótus, vez por outra tomamos da pena e displicentemente produzimos a nossa obrinha-prima, regressando depois às delícias da nossa tôrre de marfim. Somos simples artesãos, temos uma vida dura e trabalhosa, pois quase sempre acumulamos o ofício de escrever, já de si ingrato, com as outras lutas mais ou menos duras da vida cotidiana.
E os louros – êsses nossos louros em que vocês falam, quando querem nos lisonjear, posso lhes dizer que não se entrançam em coroa para nos ornar a fronte. Os daqui de casa, pelo menos, mal chegam para temperar o feijão...
Note–se bem: Pedidos de remessa de artigos, livros, etc., por favor encaminhem à gerência da revista ou da minha editôra. Os que estão em meu poder, tenho-os encaminhado – mas teriam resultado mais pronto e satisfatório fazendo assim, como estou aconselhando.
Dirijo-me, entre outros, ao amigo e leitor português que me mandou uma nota de vinte escudos, inclusa numa carta.
(memoriaviva.com.br/ocruzeiro -17/10/1959)o blog manteve a grafia original
Rachel de Queiroz
Chega-se de viagem e o amontoado de correspondência nos espera – parece que está crescendo, ou será ilusão de vista, filha do sentimento de culpa? Êsse problema de cartas, para o pobre escritor brasileiro, é dos mais sérios. Respondê-las tôdas seria impossível. E, por outro lado, não há por cá o hábito de encarregar secretários da nossa correspondência particular; a tendência do correspondente seria ressentir-se, ao receber uma folha de papel formal e datilografada por terceiro, em resposta à sua cartinha espontânea e pessoalíssima. Aliás – começa que nem temos secretários. Pelo que sei, só artistas de rádio se podem, entre nós, dar êsse luxo...
Depois – a maioria esmagadora das cartas que recebemos tratam de assunto que secretário nenhum pode resolver: pois, sem exagêro, 90% dos que nos procuram, o seu fim principal é êste: mandar uma amostra do que escrevem e pedir ao jornalista a quem se dirigem uma palavra de incentivo ou de crítica, ou uma promessa de publicação. Peço agora a Deus que me inspire para poder explicar a êsses confiantes amigos e leitores a impossibilidade em que nos vemos para lhes satisfazer os desejos. Dizer-lhes de saída que a crítica literária é atividade muito difícil, muito complexa, que exige não só vocação específica, como conhecimentos muitíssimos especializados. Não pode ser exercida assim de repente, por simples capricho; ou para satisfazer um amigo. O fato de um de nós escrever crônicas que agradem a um ou a outro, ou compor versos, ou inventar histórias, não nos confere automàticamente capacidade e muito menos autoridade para julgar trabalhos literários. Eu, de mim, confesso que a simples página que me manda um candidato a escritor (a menos que seja tão ruim que a evidência salte do papel) deixa-me na maior perplexidade. Tenho mêdo de me enganar, de cometer um dêsses erros-julgamento que talvez possam a vir estragar uma vocação. Duvido do meu juízo, pois, se comigo própria tantas vêzes me engano, e mando para publicação muita coisa que jamais deveria ser posta em papel! Sim, tenho horror a servir de juiz.
Além disso, tivesse eu disposição e capacidade para o ofício, ainda me faltaria outra condição indispensável: tempo. Pois teria que dedicar dias e dias seguidos – dias de que não disponho - para a leitura dos originais e a sua crítica, e mais outros dias para a correspondência com os autores... – e, em que tempo daria eu conta da acumulação variada e enfadonha das tarefas que já é o meu quinhão obrigatório neste vale de lágrimas? Creio que todo mundo sabe que nós, profissionais da pena, trabalhamos para ganhar a nossa vida. Escrever, para nós, é ofício, e ofício penoso. Diàriamente, como uma fera, a dentuça da máquina de escrever está aí para nos devorar o surrado miolo – é o artigo para entrega, é o livro, a peça, a tradução, –- sei lá! Raro, raríssimo o dia em que um compromisso de entrega urgente não nos amarra ao pé do malfadado instrumento – e enquanto os outros tomam banho de mar, ou vão ao cinema, ou batem papo nas livrarias, nós ficamos blá-blá-blá, no teclado, espremendo o juízo, inventando assunto, suando sangue. E assim, por maior boa-vontade que a gente tenha para com os que começam, primeiro temos que enfrentar os nossos dois grandes problemas: tempo e dinheiro. Precisamos de um para ganhar o outro...
Dirão os que querem começar: e a quem nos dirigimos para conselhos, crítica, incentivo? Bem, falando franco, a maioria dos que começam a escrever, precisam mesmo é de um professor. E há muito curso bom de literatura e linguagem espalhados pelo Brasil todo. Críticos, para aquêles que estão em fase mais adiantada, que já estão seguros do que fazem e já se consideram em condições de enfrentar o público, também os temos, dos mais capazes e sabedores. Cada grande jornal ou revista tem o seu crítico oficial, assinando um rodapé ou seção fixa, e revista há, como a nossa irmã “A Cigarra”, que dispõe não apenas de um único crítico, mas de tôda uma equipe, escolhida entre os maiores nomes da especialidade, no País.
Quanto às possibilidades de publicação, em jornal, revista ou livro, isso então é que não depende de nós escribas, de jeito nenhum. Um colaborador, como esta vossa criada, por exemplo, não tem nada, mas nada de nada, com a orientação, direção e publicação da sua revista. Escrevemos em casa, e o portador do jornal nos vem buscar a crônica no dia certo, tôda semana. Só uma vez por mês, no agradável dia de receber senão o vil metal, pelo menos o vil papel-moeda, é que chego até à Rua do Livramento, aproveitando a viagem para visitar e conversar um pouco com os queridos amigos, a bem dizer todos que lá trabalham, benza-os Deus. À direção, ao secretário, às seções especializadas de literatura, é que se devem dirigir os pretendentes, pois só dêles (e seria até intromissão indevida nossa o invadirmos o trabalho de colegas), só dêles depende a aceitação ou recusa de novos colaboradores.
Com os editores de livros, dá-se o mesmo que com jornais e revistas. Cada editor tem o seu corpo de leitores que estuda os originais e escolhe os que merecem publicação. A edição de um livro, hoje em dia, representa grande emprêgo de capital e a gente não pode exigir de um editor amigo que arrisque cem ou duzentos contos num livro, só pelos nossos bonitos olhos, porque nós estamos pedindo. Êles lá dentro, depois de consultada a sua equipe de seleção e suas conveniências, é que podem decidir se tal original interessa ou não.
* * *
Compreendo bem que tudo isso demonstra que cada dia se torna mais difícil aos jovens furar a barreira do desconhecimento. Mas a culpada disso não sou eu, e acho que falar a verdade não aumenta as dificuldades – talvez até facilite. Pode ser duro o que estou dizendo, mas é a realidade. Os moços que não se zanguem conosco, velhos profissionais, por essa recusa que talvez lhes pareça egoísta e desumana – mas o fato é que não está nas nossas mãos resolver o problema dêles. Nós somos uns pobres diabos como tôda gente, estamos muito longe de ser meros e felizes diletantes, que, interrompendo um ócio de comedores de lótus, vez por outra tomamos da pena e displicentemente produzimos a nossa obrinha-prima, regressando depois às delícias da nossa tôrre de marfim. Somos simples artesãos, temos uma vida dura e trabalhosa, pois quase sempre acumulamos o ofício de escrever, já de si ingrato, com as outras lutas mais ou menos duras da vida cotidiana.
E os louros – êsses nossos louros em que vocês falam, quando querem nos lisonjear, posso lhes dizer que não se entrançam em coroa para nos ornar a fronte. Os daqui de casa, pelo menos, mal chegam para temperar o feijão...
Note–se bem: Pedidos de remessa de artigos, livros, etc., por favor encaminhem à gerência da revista ou da minha editôra. Os que estão em meu poder, tenho-os encaminhado – mas teriam resultado mais pronto e satisfatório fazendo assim, como estou aconselhando.
Dirijo-me, entre outros, ao amigo e leitor português que me mandou uma nota de vinte escudos, inclusa numa carta.
(memoriaviva.com.br/ocruzeiro -17/10/1959)o blog manteve a grafia original
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