Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de dezembro, 2017

Passagem de Ano, Carlos Drummond de Andrade

O último dia do ano não é o último dia do tempo. Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor [da vida. Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, [doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o [clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão. O último dia do tempo não é o último dia de tudo. Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens. Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olho e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus... Recebe com simplicidade este presente do [acaso. Mereceste viver mais um ano. Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos [séculos. Teu pai morreu, teu avô também. Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras [espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer. O recurso de se embriagar. O recurso da dança e do grito, o recurso da bola co

Na Noite Santa Em Que Nasceu Jesus, Rogaciano Leite

Belo soneto de Rogaciano Leite, escrito de improviso numa mesa de bar no Recife, na véspera de Natal do ano de 1953. O tema: " Na noite santa em que nasceu Jesus ", foi dado pelo  folclorista Aleixo Leite Filho (Leci).   Bebo. E, bebendo pela vida afora  Esqueço-me das mágoas torturantes De hora em hora, de instantes em instantes, De instantes, em instantes, de hora em hora. Vejo as visões que já não tenho agora, Visões e outrora que já vão distante. São fantasmas de amor extravagantes, Extravagantes ilusões de outrora. Bebo. E ninguém me culpe desse vício; Se eu rolar, ou tombar no precipício, Conduzirei, sozinho, a minha cruz. Porém, jamais, embora frente à taça Me esquecerei do amor, da luz, da graça, Na noite santa em que nasceu Jesus. Do livro, “Rogaciano Leite – do Cordel ao Erudito” de Paulo Cardoso.

Dedicatória (2): Aos Bichos, Às Nuvens, Aos Rios-Irmãos, Luciano Maia

Aos Bichos Ao bicho triste (pé de arribação) À acauã que canta o triste fado À juriti, ao pássaro carão À asa-branca, ao sabiá, ao gado Que bebe o rio-ausente do verão Em cantigas de aboio represado. A todos os viventes dos caminhos Reverberadas pelos passarinhos. Às Nuvens Ás andarilhas nuvens tropicais Que recebem do solo vaporoso As águas em conúbios vesperais E retornam (nem sempre) ao sequioso País das pedras intertemporais Nalgum velado encontro, em breve pouso Dedico (na esperança de revê-las) Este canto de amor sob as estrelas. Aos Rios-Irmãos Aos rios do Ceará, principalmente Os do sertão sedento que não vão Muito longe da terra seca e quente Onde resiste o deserdado irmão Preso a um fio d´agua sucumbente Que o amarra à sina deste chão Mas que ao tempo do solo lavradio É a mais doce vazante do meu rio. In: Maia, Luciano, Jaguaribe Memória das Águas, Governo do Estado do Ceará 2010 Imagem: Assembleia legislativa do estado do Ceará Leia ta

A Orelha de Van Gogh, Moacyr Scliar

           Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar. Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação… Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam deles, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável. Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu

Quadros, Marin Sorescu - tradução: Luciano Maia

Todos os museus têm medo de mim porque cada vez que fico um dia inteiro em frente de um quadro, no dia seguinte se anuncia o seu desaparecimento. Todas as noites sou flagrado roubando em outra parte do mundo, mas eu não me importo com as balas que silvam perto dos meus ouvidos e com os cães-lobos que conhecem agora o cheiro dos meus rastros melhor que os namorados o perfume da amada. Falo alto com as telas que põem em perigo a minha vida penduro-as nas nuvens e nas árvores e recuo para ter perspectiva. Com os mestres italianos pode-se ter facilmente uma conversa. Que algazarra de cores! Também por esse motivo com eles sou flagrado rapidamente visto e ouvido à distância como se levasse papagaios nos braços. O mais difícil é roubar Rembrandt: estendes a mão e encontras a escuridão – Ficas horrorizado, os seus homens não têm corpos apenas têm olhos fechados em caves escuras. As telas de Van Gogh são doidas giram e dão cambalhotas e tenho de segurá-las bem

Biografia do Língua, Mário Lúcio Sousa

- É isto a liberdade? Há qualquer coisa de inseparável entre liberdade e solidão. Mas também há qualquer coisa de parecido entre liberdade e o amor. Serão iguais. Solidão ajuda a perceber a liberdade. Mas é em companhia que a gente a saboreia. Acho que no amor acontece o mesmo: a sós significa dois. Mas liberdade com medo, liberdade fugindo, não é liberdade, é soltura. Seja como for, não é submissão. Amor deixado para trás é amor? Liberdade nós trazemos connosco. E o amor? Também. Todos os que eu amei estão cá comigo. Ajudem-me. O meu consolo é que, pelo que eu pude perceber, um escravo fujão nunca é considerado um homem covarde. O padrinho entenderá. Espero que minha menina também. Mas vou viver sem eles toda a vida?  O Língua olhava para o seu fardo, para o incansável outro que o tinha suportado todos os dias, dizia-lhe:Aguenta-te, rapaz, não me abandones e não te abandonarei.

Ser Levado, Vitorino Nemésio

Tivesse eu sido o que não fui, Hoje era o mesmo projectado António, Pedro, Lopo, Rui, Quatro semblantes num só estado.

Pedaços, Marcos Cirano - Convite

  Não perca! Compre agora e receba no dia 13 de dezembro,  festa de lançamento: