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Mostrando postagens de abril, 2017

Quarta-feira é dia de: Fernanda Torres

Padre Graça acordou de madrugada. Rezou, fez a higiene matinal, comeu pouco, como de hábito, e preparou a pequena mala com os objetos litúrgicos. O São João Batista o aguardava. Havia vinte e quatro anos cumpria a função de levar a palavra de Deus para famílias que perderam seus entes queridos. No início, via sentido em ser capelão, não mais. Preferia ser transferido para uma comunidade pequena, onde ainda houvesse fieis. Via o quanto os seres urbanos eram hostis e descrentes da paz eterna. O entusiasmo de seminarista cedera espaço a um isolamento estéril, sem saída. O convívio excessivo com a morte o tornara insensível. Não se adequava mais ao cargo. O pedido de transferência fora enviado meses antes, mas os superiores não demonstravam pressa para encontrar substituto. Padre Graça esperava resignado. Por isso, a perspectiva de enfrentar a sequência de velórios, no longo dia quente que se anunciava, lhe consumiu os sentidos. Teria perdido a fé?      Quem o visse entrar no 13

Desafio da Livraria Cultura.

Recebi de minha filha o desafio da Livraria Cultura, vejam só: São apenas oito itens e eu até pensei que me daria bem.  Fui derrotada duas vezes.  * Um livro ganhador do Prêmio Pulitzer. Consegui: O Velho E O Mar, de Ernest Hemingway * Um livro com mais de 500 páginas:   Consegui: Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Aproveito pra recomendar essa leitura.  * Um livro de autor lationo-americano Consegui. Esse item foi facílimo porque li vários García Márquez, Vargas Llosa, Isabel Allende, Eduardo Galeano, Neruda ...Vou dar um título de cada um: Cem Anos de Solidão, A Festa do Bode, Paola, O Livro dos Abraços, 20 Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada.  * Um livro que foi proibido ao ser lançado. Consegui: pensei de imediato em Henri Miller, com Trópico de Câncer. Ví ontem que O Crime do Padre Amaro de Eça de Queiroz também foi proibido em Portugal.  Consegui dois livros, então. * Um livro escrito antes de 1900. Esse foi difícil.  Não fazia idei

23 de Abril: Dia Mundial do Livro e de São Jorge.

Inca Garcilaso de la Vega William Shakespeare   Descobri hoje que na Catalunha já existia  uma celebração, muito simpática, por sinal, aos livros feita no dia 23 de abril. Consistia em, no dia de São Jorge, dar uma rosa a quem comprasse um livro. Achei essa muito  fofa  essa ideia dos catalãs. Bem, mas inspirada ou não nessa celebração da Espanha a UNESCO aproveitou o dia (23 de abril) de morte de Shakespeare, Cervantes e La Vega e criou o Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor. A intenção foi incentivar a leitura e lembrar, principalmente jovens, da importância do livro e dos autores através dos séculos. Miguel de Cervantes São Jorge Especialmente neste 23 de abril de 2017, a Saraiva ,  destina à UNESCO   R$1,00 de cada compra feita em suas lojas físicas e ou on line. E tenho orgulho de dizer que sou leitora viciada, fiz de meus filhos bons leitores e há pouco mais de uma década sou integrante de um grupo de leitura que além de saciar o vício da leitura, in

As Formigas, Lygia Fagundes Telles

     Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima. – É sinistro. Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina. – Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima. A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. – É você que estuda medicina? – per

Os Lados, Paulo Mendes Campos

Há um lado bom em mim. O morto não é responsável Nem o rumor de um jasmim. Há um lado mau em mim, Cordial como um costureiro, Tocado de afetações delicadíssimas. Há um lado triste em mim. Em campo de palavra, folha branca. Bois insolúveis, metafóricos, tartamudos, Sois em mim o lado irreal. Há um lado em mim que é mudo. Costumo chegar sobraçando florilégios, Visitando os frades, com saudades do colégio. Um lado vulgar em mim, Dispensando-me incessante de um cortejo. Um lado lírico também: Abelhas desordenadas de meu beijo; Sei usar com delicadez um telefone, Nâo me esqueço de mandar rosas a ninguém. Um animal em mim, Na solidão, cão, No circo, urso estúpido, leão, Em casa, homem, cavalo… Há um lado lógico, certo, irreprimível, vazio Como um discurso, Um lado frágil, verde-úmido. Há um lado comercial em mim, Moeda falsa do que sou perante o mundo. Há um lado em mim que está sempre no bar, Bebendo sem parar. Há um lado em mim que já morreu. Às vezes penso se esse l

A Caderneta Vermelha, Antoine Laurain.

O táxi a deixou na esquina do bulevar. Ela só precisava caminhar cinquenta metros para chegar em casa. A rua era iluminada pelos lampiões que coloriam as fachadas com reflexo laranja, mas ainda assim, como sempre lhe acontecia tarde da noite, ela ficou apreensiva. Olhou para trás e não viu ninguém. A luz do hotel, ali em frente, inundava a calçada entre dois arbustos plantados em vasos que delimitavam a entrada do hotel três estrelas. Ela parou diante do seu prédio, abriu o zíper do meio de bolsa para pegar o chaveiro com o controle remoto, e depois tudo aconteceu muito depressa. Uma mão segurou a alça, uma mão surgida do nada e pertencente a um homem moreno, vestido com uma jaqueta de couro. O medo levou apenas um segundo para atravessar todas as suas veias e subir até o coração, para ali explodir numa chuva gelada. Por reflexo, ela se agarrou à bolsa, o homem puxou e, encontrando resistência, pousou a mão sobre o rosto dela e empurrou a cabeça contra o metal da porta. A cadern