Era um samba-canção interpretado em todas as boates, em cada piano-bar da noite. O disco vendia como água. A todo momento, passando pelas lojas de discos eu ouvia:
Diga que já não me quer,
Negue que me pertenceu,
Que eu mostro a boca molhada,
Ainda marcada pelo beijo seu.*
Aquele refrão ficava em minha cabeça. Tocava no apartamento de Tania mulher, que morava na praça Marechal Deodoro e que me ligava para levá-la às estreias dos filmes. Havia muitas estreias naquele começo de década de 1960, e eu, crítico de cinema, tinha convite para todas. Não sei como Tania descobria, devia ler no jornal. Ela me ligava:
- Amanhã tem estreia. Vamos?
- Vamos.
Ia buscá-la de táxi. depois do cinema, ela insistia em jantar no Gigetto, então restaurante badalado; Tania gostava de ver arristas, queria que eu apresentasse. Quando eu subia até o apartamento dela, ouvia aquela canção:
Diga que meu pranto é covardia,
Mas não esqueça
Que você foi minha um dia.
Eu ligava "Negue" ao perfume que Tania usava, um velho perfume do início dos anos 1939: Tabu, da Dana ( ou "de Dana" como se dizia). Sensualidade sempre ficou ligada àquele perfume que nem sei se existe ainda. Mulheres sérias, ou ditas sérias, não usavam; era o perfume das vedetes do teatro de revista. Sensualidade sempre ficou ligada também àquela música:
Que eu mostro a boca molhada,
Ainda marcada por um beijo seu.
Seria coisa minha, de interiorano, caipira?
Depois do cinema, terminado o jantar, eu esperava continuar a noite, chegar no auge, mas Tania pedia:
- Me leve para casa, estou cansada, minha mãe está sozinha. Noite dessas saimos para dançar e aproveitar, você merece.
- Não pode ser hoje?
- Não. Qualquer dia te conto. Vai entender e vai gostar muito de mim. É um problema de tempo. entender o tempo, saber por que ele está parado para uns enquanto voa para outros.
- Seu tempo está parado? Como parado?
- Há muito, muito tempo.
Exigia que eu a levasse até o apartamento, lá em cima, e o táxi ficava esperando. Custava uma nota - um livro a menos a comprar, um jantar a menos no Gigetto, onde eu sonhava comer camarão à grega, o prato mais caro, mais sofisticado. No apartamento, perto de uma da manhã, Tania ligava a vitrola, me servia uisque com guaraná ( como bebíamos mal!), e eu pensando no táxi lá em baixo. Engolia o uisque, dava um beijo no rosto e descia correndo. Pagava o táxi e ia a pé para casa, ainda com aquela música na cabeça.
Pise, machucando com jeitinho,
Esse coração que ainda é seu.
Até que ela deixou de me ligar.
Meses depois, fui ao apartamento. Uma senhora me atendeu, disse que era a mãe. Tania estava viajando, ia demorar muito. A mulher chorava. Um ano depois, bati de novo, a senhora, agora bem alquebrada, me disse:
- Tania? O senhor não sabe o que aconteceu?
Lá de dentro, uma voz perguntou:
- Quem é? Não deixe entrar!
Era a voz de Tania. A velha bateu a porta, ouvi trincos se fecharem. Bati, bati, apertei a campainha. Desisti. Num apartamento da Marechal Deodoro, hoje atravessada pelo horrendo Minhocão, Tania ainda estará com seu tempo paralisado? E o que isso queria dizer? Ou o tempo dela acabou?
* - Negue (1960) Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos.
Em:Solidão No Fundo da Agulham Ignácio de Loyola Brandão, Fundação Carlos Chagas, 2012, págs.61-63

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