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Mostrando postagens de setembro, 2025

Três Mulheres E Uma Quarta, poema de Adélia Prado

Arnalda, Alice e Armantilda são três mulheres piedosas que amam passar as tardes no serviço do templo. Arnalda, forte e bruta, lava teto, piso e paredes, lustra sacrário e átrio. Alice é para as flores: a espécie conforme o jarro e o calendário litúrgico. Armantilda é para adorar. O Senhor ama igualmente as três, mas simpatiza mais com Araceli. À uma e meia da tarde elas vêm com balde, rosário e rosas, Araceli com seu nariz. Ai que cheiro, ela diz: poeira, flor murcha e incenso, o sovaco de Deus. Ai que cheiro, ela diz, louvado seja! Quando ela chega, desacomoda o pó de entremeio-os-dedos das imagens, os toquinhos de vela crepitam e morrem, arroxeiam de vez as rosas de remédio na jarrinha. Araceli cheira e cata, feliz como um cachorro, e sai com o lixo sagrado dela.

Luz de Lanterna, Sopro do Vento - conto de Marina Colasanti

     Tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da sua ausência a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a do lado de fora da casa. “Para trazê-lo de volta,” murmurou. E foi dormir.      Mas, ao abrir a porta na manhã seguinte, deparou-se com a lanterna apagada. “Foi o vento da madrugada,” pensou olhando para o alto como se pudesse vê-lo soprar.      À noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que, a distância deveria indicar ao seu homem o caminho de casa.      Ventou de madrugada. Mas era tão tarde e ela estava tão cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das árvores, nem o gemido das frestas, nem o ranger das argolas da lanterna. E de manhã surpreendeu-se ao encontrar a luz apagada.      Naquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se estudando o céu límpido, as claras estrelas. “Na certa não ventará,” disse em voz alta, quase dando uma ordem. E encostou a chama do fósforo no pavi...

Ossos do Ofício, crônica de Antonio Prata

     Se o mundo fosse justo, o trocadilho teria seu lugar no panteão das criações humanas. Ficaria abaixo dos sonetos e das sinfonias, sem dúvida, mas acima dos provérbios e das palavras cruzadas. Infelizmente, tido como artifício banal, peixe abundante no vasto lago do pensamento - espécie de lambari do intelecto - o trocadilho é tratado com desprezo. Desdenhado pela maioria dos poetas e escritores, sobrevive apenas à sombra das máquinas de café, na firma, no papo dos donos de churrascaria e - mistério dos mistérios - nas fachadas de pet shops.      Por alguma razão, seres humanos que vendem produtos para animais de estimação têm uma compulsão por jogos de palavras nos nomes de seus estabelecimentos: AUqueMIA, AmiCÃO, CÃOgelados, SimpatiCÃO, Oh my dog!, CÃOboy, Pet&gatô, por aí vai.      Diante desses e de outros exemplos - que encontram-se em todo o território nacional, como provam as fotos no blog http://trocaodilho.tumblr.com - o leit...

Mulheres da Fuvest (9) Sophia de Mello Breyner Andresen: O Cristo Cigano

O Cristo Cigano da autora portuguesa Sopha de Melo Breyner contém 12 poemas que contam a história de um cigano que foi morto por um escultor para que ele pudesse usar sua imagem em uma escultura de Cristo.    Essa lenda foi contada à Sophia por João Cabral de Melo Neto. A autora homenageia JCMN no livro  que tem edição brasileira e é um dos exigidos pela Fuvest para o vestibular de 2026.  O Cristo Cigano foi lançado em 1961.  Os poemas não numerados de 1 a 12 e   o blog Livro Errante traz o de número 10. A lenda: Um escultor foi contratado pela igreja católica para esculpir uma peça que representasse Jesus em sua agonia na cruz. O artista, porém, não consegue criar sem um modelo. Precisa ver alguém morrendo. Tem dúvidas sobre esperar uma morte natural  ou matar alguém para, então, trabalhar já que a encomenda vinha com um prazo.  Opta pela segunda alternativa e aguarda alguém lhe aparecer. Avista, então, um cigano a banhar-se num rio. É atra...

Vamos Pensar? (29) Lutos Invisíveis

 

Murmúrios, poema de Waldir Araújo (Guiné-Bissau)

Dizem que são murmúrios os ecos que chegam do fundo deste mar São palavras soltas aos ventos frases melódicas para somar   Murmúrios que escondem feitiços segredos e estórias por desmontar São lamentos de cores mestiços São sombras desenhadas ao luar   No fundo deste mar o silêncio fala grita e clama como a força das marés Não longe essa voz alguém embala Não longe os ecos se escutam no convês   No fundo deste mar há tormentos Há vontade de um silêncio romper Querer e vontade não são lamentos No fundo, este mar esconde um poder!  

O Ateu, conto de Rachel de Queiroz

     Era uma vez, já faz muito tempo, havia um homem que era ateu. Naquele pequeno povoado onde morava não existia nenhum outro ateu igual a ele, de forma que o coitado vivia em grande isolamento. Mas era orgulhoso e não se queixava, mesmo quando se sentia mais solitário, por exemplo nos dias de domingo, em que todo o povo da terra ia ouvir missa e ele ficava vagando entre as árvores da praça; ou na véspera de Natal, quando as pessoas só se preocupavam com o Presépio e com a Missa do Galo. Tocavam os foguetes, os sinos repicavam, todo o mundo se alegrava e ia cear, mas o ateu declinava os convites que lhe faziam: não tendo rezado, não se achava com direito à ceia, pois ele com ser ateu não deixava de ser honesto; trancava-se em casa e ficava de vela acesa, lendo um dos seus livros de ateísmo. E, se alguma das pessoas vindas de longe para assistir às festas naquele povoado estranhava a silhueta do homem solitário a ler junto à fresca da janela e perguntava por que não esta...

Trova do Vento Que Passa, poema de Manuel Alegre ( citado pela Ministra Carmem Lúcia)

Pergunto ao vento que passa Notícias do meu país E o vento cala a desgraça O vento nada me diz. O vento nada me diz. Pergunto aos rios que levam Tanto sonho à flor das águas E os rios não me sossegam Levam sonhos deixam mágoas. Levam sonhos deixam mágoas Ai rios do meu país Minha pátria à flor das águas Para onde vais? ninguém diz. [se o verde trevo desfolhas Pede notícias e diz Ao trevo de quatro folhas Que morro por meu país. Pergunto à gente que passa Por que vai de olhos no chão. Silêncio -- é tudo o que tem Quem vive na servidão. Vi florir os verdes ramos Direitos e ao céu voltados. E a quem gosta de ter amos Vi sempre os ombros curvados. E o vento não me diz nada Ninguém diz nada de novo. Vi minha pátria pregada Nos braços em cruz do povo. Vi minha pátria na margem Dos rios que vão pró mar Como quem ama a viagem Mas tem sempre de ficar. Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas) Vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas). Há quem te queira ignorada E fale pátria...

Cantiga Pequenina, poema de Thiago de Mello

A noite é linda, Isabella, quando serve de acalanto ao dia que vai nascer. É feia a noite, Isabella, quando a sombra esgarça a festa do verão no amanhecer. Estou no centro da noite: comigo, na minha mão, a canção da tua vida me ensinando a caminhar na mais clara direção do homem: saber amar. Em: Poesia Comprometida com a minha e a tua vida.  Ed. Civilização Brasileira, 1992, pág.75

História Passional, Hollywood, Califórnia - poema de Vinícius de Moraes

Preliminarmente telegrafar-te-ei uma dúzia de rosas Depois te levarei a comer um shop-suey Se a tarde também for loura abriremos a capota Teus cabelos ao vento marcarão oitenta milhas. Dar-me-ás um beijo com batom marca indelével E eu pegarei tua coxa rija como a madeira Sorrirás para mim e eu porei óculos escuros Ante o brilho de teus dois mil dentes de esmalte. Mascaremos cada um uma caixa de goma E iremos ao  Chinese  cheirando a hortelã-pimenta A cabeça no meu ombro sonharás duas horas Enquanto eu me divirto no teu seio de arame. De novo no automóvel perguntarei se queres Me dirás que tem tempo e me darás um abraço Tua fome reclama uma salada mista Verei teu rosto através do suco de tomate. Te ajudarei cavalheiro com o abrigo de chinchila Na saída constatarei tuas  nylons 57 Ao andares, algo em ti range em dó sustenido Pelo andar em que vais sei que queres dançar rumba. Beberás vinte uísques e ficarás mais terna Dançando sentirei tuas pernas entre as minhas Cheirarás ...

Noite de Almirante, conto de Machado de Assis

  Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo: - Ah! Venta-Grande!  Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva... Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior. A velha Inácia, que...

Meu Nome É Carolina, conto de Natascha Duarte

      A festa junina da escola é um acontecimento esperado por todos, o ano inteiro. Cada membro da organização da festa recebe uma tarefa planejada e cumprida com rigor. Da parte alimentar, cuida dona Olinda, a merendeira que há 30 anos trabalha na escola; da música, o locutor da Prefeitura que nas horas vagas faz bicos como DJ; da coreografia, a professora de Artes, Isabela; e a João, o diretor, cabe punir exemplar mente os alunos do primeiro ao quinto ano que faltem aos ensaios da quadrilha. Aninha está já na sexta série. Para ela, portanto, é facultativo participar da dança. Para os menores, porém, a atração é uma sugestão imperiosa, senão a festa dei xa de existir. Ora, basta os que não a frequentam por razões religiosas se juntarem aos queixosos de plantão, aqueles que reclamam do preço, da hora, do dia, da indumentária, das músicas, etc., que a festa desaparece do mapa num estalo de traque. Com vontade de correr para adiantar o tempo, a menina chega à...

Vamos Pensar? (27) Hannah Arendt

   “Mentir constantemente não serve mais para fazer as pessoas acreditarem em uma mentira, mas p ara garantir que ninguém acredite em nada.” A filósofa alerta para o perigo de uma sociedade mergulhada na desconfiança, onde a manipulação das narrativas não visa apenas enganar, mas anular a própria capacidade de distinguir entre verdade e falsidade. Esse estado de confusão fragiliza os vínculos sociais, mina a ética e abre espaço para regimes autoritários que se alimentam do descrédito coletivo. Mas o que acontece com uma comunidade quando a fronteira entre verdade e mentira deixa de existir? Nesse cenário, a perda da confiança transforma-se em descrença generalizada, tornando os indivíduos incapazes de julgar o que é justo ou injusto. A verdade deixa de ser parâmetro, e o bem e o mal tornam-se categorias maleáveis, moldadas pelo poder de quem controla o discurso. Arendt nos mostra que o maior perigo não é a mentira em si, mas a erosão da confiança pública, que enfraquece a libe...

16 crônicas de Luís Fernando Veríssimo.

  16 crônicas de Luís Fernando Veríssimo   1 -  Dia de Ressaca , fevereiro de 2015 2 -  Outra de Elevador  junho de 2024 3 -  Tu e Eu   dezembro de 2023 4 -  Futebol de Rua  novembro de 2022 5 -  Conto de Verão Número 2: Bandeira Branca  janeiro de 2025 6 -  Conclusão  outubro de 2020 7 -  A Mulher Que Caiu do Céu  abril de 2024 8 -  Alto Nível  fevereiro de 2012 9 -  Pai Não Entende Nada,  agosto de 2012 10 -  Conto Erótico  agosto de 2011 11 -  O Estranho Caso da Repórter Que Perguntava  abril de 2013 12 -  Outra Carta de Dorinha  janeiro de 2016 13 -  O Travesseiro de Lenny Bruce  maio de 2022 14 -  Budum Filho  janeiro de 2012 15 -  Aprenda a Chamar a Polícia  maio de 2019 16 -  O Tridente  abril de 2018