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Pedro, O Homem da Flor - crônica de Sérgio Porto


     Se você se enquadra entre aqueles que se dizem boêmios ou, pelo menos, entre aqueles que costumam ir, de vez em quando, a um desses muitos barzinhos elegantes de Copacabana, é provavel que já tenha visto alguma vez Pedro - o homem da flor. Se, ao contrário, você é de dormir cedo, então, não. Então, você nunca viu Pedro - o homem da flor - porque jamais ele circulou de dia e não ser lá, na sua favela do Esqueleto.
     Quando anoitece Pedro pega a sua clássica cestinha, enche de flores, cujas hastes teve o cuidado de enrolar em papel prateado, e sai do barraco rumo a Copacabana, onde fica até alta madrugad, entrando nos bares, porque Pedro conhece todos - vendendo rosas. Quando a cesta fica vazia, Pedro conta a féria e vai comer qualquer coisa no botequim mais próximo. Depois volta para casa como qualquer funcionário público que tivesse cumprido zelosamente sua tarefa, na repartiçào a que serve.
     Conversei uma vez com Pedro - o homem da flor. Já o vinha observando quando era o caso de estar num bar em que ele entrava. Via-o chegar e dirigir-se às mesas em que havia um casal. Pedia licença e estendia a cesta sobre a mesa. Psicologia aplicada, dirão vocês, pois qual o homem que se nega a oferecer uma flor à moça que oacompanha, quando se lhe apresenta a oportunidade? Sim, talvez Pedro seja bom psicólogo mas, mais do que isso, é um romântico. Quando o homem mete a mão no bolso e pergunta quanto custa a flor, depois de ofertá-la à companheira, Pedro responde com um sorriso:
     - Dá o que o senhor quiser, moço. Flor não tem preço.
Como eu ia dizendo, conversei com Pedro e, desse dia em diante, temos conversado muitas vezes. Ele sabe de coisas. Sabe, por exemplo, que a rosa branca encanta as mulheres morenas, enquanto as louras, invariavelmente, preferem as rosas vermelhas. fiel às suas observações, é incapaz de oferecer rosas brancas às louras, ou vice-versa. Se entra num bar e as flores de sua cesta são todas de uma só cor, não coincidindo com o gosto comum às mulheres presentes, nem chega a oferecer sua mercadoria. vira as costas e sai em demanda de outro bar, onde estejam louras ou morenas, se for o caso.
     O pequeno buquê de violetas - quando as há - é carinhosamente arrumado pelas suas mãos grossas de operário, assim como também as hastes prateadas das rosas. Saibam todos os que se fizeram fregueses de Pedro - o homem da flor - que aquele papel pratado artisticamente preso na haste das rosas, e que tanto encanta as moças, foi antes um prosaico papel de maços de cigarros vazios, que o próprio Pedro recolheu por aí, nas suas andanças pela madrugada.
     Sei que Pedro ama a sua profissão, tira dela seu sustento, mas acima de tudo esforça-se po dignificá-la. Não vê que seria um mero mercador de flores! Lembro-me da vez em que, entrando pelo escuro do bar, trouxe nas mãos a última rosa branca para a moça morena que bebia calada entre dois homens.      Quando os três levantaram a cabeça ante sua presença, pudemos notar - eu, ele e as dmais pessoas presentes - que a moça era linda, de uma beleza comovente, suave, impr4essionante. Pedro estendeu-lhe a rosa sem dizer uma palavra e, quando um dos rapazes quis pagar-lhe, respondeu que absolutamente não era nada. dava-se por muito feliz por ter tido a oportunidade de oferecer aquela rosa à moça que ali estava. E sem ousar olhar novamente para ela, disse:
     - Mais flores daria se mais flores eu tivesse!
     Assim é Pedro - o homem da flor. Discreto, sorridente e amável, mesmo na sua pobreza. Vende flores quase sempre e oferece flores quando se emociona. Foi o que aconteceu na noite em que, mal chegado a Copacabana, viu o povo que rodeava o corpo de um homem morto, vítima de um mal súbito. Só depois é que se soube que Pedro o conhecia do tempo em que era porteiro de um bar no Lido. Na hora não. Na hora ninguém compreendeu, embora todos se comovessem com seu gesto, ali abaixado a colocar todas as suas flores sobre as mãos do homem morto. pois foi o que Pedro fez, voltando em seguida para sua favela do Esqueleto.
     Naquela noite não trabalhou.

Em: O Homem ao lado, Sérgio Porto. Cia das letras,São Paulo 2009, Págs.183-185

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