Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de março, 2025

Construção, poema de Mauro Mota

"Orgulho-me do meu curso de indigência." (De uma carta do poeta José Maria Cerqueira) Vem vindo José Maria, vem de São Bento do Una, vestido de roupa cáqui e de botinas reiúnas. No conselho da família, só encontra hierarquia do avô cabo de polícia. O pai na barbearia do povoado trabalha, mal completa o pagamento da prestação da navalha. Vem vindo José Maria, o amarelinho de São Bento do Una, sem genealogia. Vem montado no jumento. Saiu da escola. ( Não tinha nem livros nem fardamento. Aprendeu a ler sozinho.) Oh, que infância sem infância. essa de José Maria! Entrava na terra o casco do seu cavalo de pau, que o cabo da enxada era a escoiceante montaria. tirava leite das vacas, mas o leite não bebia. Os animais da fazenda, com que doçura tangia! Carregava areia e lenha com o gosto do engenheiro que uma obra construía. Foi bicheiro e negociante de passarinhos na feira. Vendeu frutas e roletas nas festas da Padroeira. Lavou frascos de botica, lavou os pratos do hotel, fez os ser...

Vamos Pensar? (23)

 

O Ex-futuro Padre e Sua Pré-viúva, conto de Mia Couto

       Era o Benjamim Katikeze. Desde pequeno ele se dedicara a ausências, paralelo ao céu. Os outros brincavam, festejando os ínfimos nadas da infância. Só o Benjamim definhava na catequese, entre santos e incenso. Mesmo os pais, que lhe queria composto e ordeiro, achavam que era por demasia.      - Vai brincar, Ben, Aproveita ser criança. Mas o Benjamim,inaudiente, se desmininava. O corpo mudara, idades além. As noites desfilavam e faziam-se côncavas para proveito de rapazes e raparigas. Só as mãos do mencionado se mantinham juntas, coladas, imaculadas. O Ben seguia mais alto que as almas.      Até que um dia apareceu Anabela, anabelíssima. Era uma rebuçada, capaz de publicar desejos nos mais pacatos olhos. Anabela apaixonou-se por Benjamim. O pobre nem com isso; ao contrário, mais ainda se internava em habilidades de kongolote. A menina enviou bilhetes, mensagens mais suspiradas que biscadas. Na presença dele, Anabela se desembrulhava...

Assim Começa a Leitura de Março no Clube Livro Errante

  E tinha muito mais: atônitos, descobrimos que nos arquivos federais em Berlim está guardado um documento antes secreto, com o título “Guayana-Projekt”, no qual o especialista em Amazônia e Untersturmführer da SS, Schulz-Kampfhenkel, recomenda explicitamente a invasão e a conquista da Guiana Francesa. Para ele, não era aceitável que a Inglaterra tivesse a Guiana, com sua capital Georgetown; que a Holanda fosse dona do Suriname; nem que os franceses possuíssem a Guiana Francesa, com sua capital Caiena, enquanto a Alemanha não tinha nenhuma base naquela região tão estratégica e rica em minerais. “A tomada das Guianas é uma questão de primeira importância por razões político-estratégicas e coloniais”, afirma ele. Em carta ao Reichsführer da SS, Heinrich Himmler, de 26 de abril 1940, Kampfhenkel dá ainda a receita para a fácil conquista daqueles territórios: a aliança com os indígenas e o aproveitamento das boas relações com o Brasil, cujo presidente, Getúlio Vargas, segundo ele, seri...

Faz Anos Navego No Incerto, poema de Caio Fernando Abreu

Faz anos navego o incerto. Não há roteiros nem portos. Os mares são de enganos e o prévio medo dos rochedos nos prende em falsas calmarias. As ilhas no horizonte, miragens verdes. Eu não queria nada além de olhar estrelas como quem nada sabe para trocar palavras, quem sabe um toque com o surdo camarote ao lado mas tenho medo do navio fantasma perdido em pontas sobre o tombadilho dou a face e forma a vultos embaçados. A lua cheia diminui a cada dia. Não há respostas. Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração como uma âncora."

Vamos Pensar? (22)

 

A Lágrima De Um Caeté ( fragmento) poema de Nísia Floresta

Era da natureza filho altivo, Tão simples como ela, nela achando Toda a sua riqueza, o seu bem todo… O bravo, o destemido, o grão selvagem, O brasileiro era… – era um Caeté! Era um Caeté, que vagava Na terra que Deus lhe deu, Onde Pátria, esposa e filhos Ele embale defendeu!… É este… pensava ele, O meu rio mais querido; Aqui tenho às margens suas Doces prazeres fruído… Aqui, mais tarde trazendo Na alma triste, acerba dor, Vim chorar as praias minhas Na posse de usurpador! Que de invadi-las Não satisfeito, Vinha nas matas Ferir-me o peito! Ferros nos trouxe, Fogo, trovões, E de cristãos Os corações E sobre nós Tudo lançou! De nossa terra Nos despojou! Tudo roubou-nos, Esse tirano, Que povo diz-se Livre e humano! Nísia Floresta:   (Dionísia Gonçalves Pinto) nascida em 1810, na cidade de Papari, Rio Grande do Norte, que atualmente leva seu nome. Nísia é considerada a primeira feminista brasileira e latino-americana, pois foi precursora em diversos campos ligados à emancipação das mulh...

Francisco, Você é Esquisito - texto de Pe. Enio Marcos de Oliveira

Não parece que é líder de uma religião. Eu rezo por você e lamento por você estar tão doente. Você é tão estranho. Respeita as religiões diferentes, parece até um tal Jesus que dialogava com a Samaritana  e atendeu a um pedido da Cananéia. Você acolhe os homossexuais que são tão perseguidos pela sociedade como eram os epiléticos, os aleijados do tempo de um tal Jesus. Você respeita as mulheres e até as convida para assumirem cargos importantes. Parece um tal Jesus que confiou à Maria Madalena o anúncio da Ressurreição. Você critica a hipocrisia dos religiosos e é tão criticado por isso,  também me lembra um tal Jesus que esculhambou os negociantes do templo e não media palavras para denunciar os doutores da lei. Você enfrenta os opressores, os poderosos como fazia um tal Jesus que chamou Herodes de raposa e não permitiu que César desfigurasse a imagem e semelhança de Deus. Ah! Francisco, como você é esquisito! Faz parecer que Deus se fez humano e que toda teologia é uma antrop...

Meu Nome é Meu, livro de Natascha Duarte.

  Os 18 contos deste livro não têm urgente ligação entre si, embora as personagens contem  histórias em comum. Uns contos falam de amor, outros de não amor, uns são concretos, outros mais absurdos. Aparecem mulheres solitárias, à beira da morte, em ataques de riso; homens arrependidos de rompantes da juventude, homens que se transformam em anjos. A autora posiciona os personagens como se encaixasse a tristeza sem que ela ocupasse um espaço grande demais.   “O conto é uma reserva tímida que se explorada com coragem se transforma em história” .  Natascha Duarte A editora Urutau nasceu para cantar as horas diante das páginas. Nos últimos cinco anos já publicamos mais de mil livros sem qualquer custo para os autores e as autoras. Nosso site é   www.editoraurutau.com.br     Essa pré-venda é de Natascha Duarte para a publicação do livro  " Meu nome é meu" . ____________________________  .   “O conto é uma reserva tímida que se explorada c...

O Que Você Tem A Ver Com Jojo Todynho? crônica de Antonio Neto

Jordana Gleise de Jesus Menezes. Obesa, baixinha (1,48m), preta retinta, carioca, periférica, seria o perfil de alguém para quem a mídia jamais daria bola, vez ou voz. Apareceu para o grande público com o hit “Que tiro foi esse?”. A música foi a janela que se abriu. Janela esta que Jojo Todynho soube aproveitar. De ex-vendedora ambulante, que corria do rapa da prefeitura, ela se viu na tela da tv, nos programas de maior audiência. Badalada e ao lado de famosos, foi escalada para participar de um reality show. Mas, o que você tem a ver com Jojo Todynho? Nada. E tudo... Visto que Jordana Gleise sintetiza, de certa forma, a polarização político-religiosa-cultural por qual passa o Brasil. Estamos como uma sucuri que está na troca de couro. E estamos na carne viva! Quem não conhece uma mulher preta, simpática, despachada, desbocada, bem-humorada, que não leva desaforo para casa? Pode ser uma babá, cozinheira, diarista, professora, enfermeira, empresária, advogada; elas estão por aí, cha...

Vamos Pensar? (21) vazio canino

 

Ventos, Poídos Ventos - poema de Joaquim Cardozo

Ventos, poídos ventos! Gastos no seu tecido Trapos que se penduram Moles da verde palha. Ventos, poídos ventos Que a tarde em cinza espalha. Vento sobre os coqueiros, De agônicas lembranças, Como passa banzeiro Sobre as copas mais altas, Em desleixados vôos De pássaros pernaltas. Ventos, que paraventos Poderiam deter-vos? folhagem de longímquos Adeuses adejantes; De marginais outonos Noturnos caminhanres! Vento sobre os coqueiros, Tristezas de alto-mar, Murmúrio gotejante Entre as folhas molhadas; Vento sobre os coqueiros Em ondas desmanchadas. Essas que ao vento vêm Belas chuvas de junho! Que saias lhes vestiram O corpo em pele fria Deixando ver somente Saudade e maresia? Ventos, naves de vento, Cargueiros de amarugens; Colhendo os sons aflitos Desse afrontado mar Fazeis a voz dolente Que além ouço cantar. Ventos, Poídos ventos Nota: o blog manteve a grafia original.

Os Argonautas, poema de Francisca Júlia da Silva

Mar fora, ei-los que vão, cheios de ardor insano; Os astros e o luar — amigas sentinelas — Lançam bênçãos de cima às largas caravelas Que rasgam fortemente a vastidão do oceano. Ei-los que vão buscar noutras paragens belas Infindos cabedais de algum tesouro arcano… E o vento austral que passa, em cóleras, ufano, Faz palpitar o bojo às retesadas velas. Novos céus querem ver, miríficas belezas, Querem também possuir tesouros e riquezas Como essas naus, que têm galhardetes e mastros… Ateiam-lhes a febre essas minas supostas… E, olhos fitos no vácuo, imploram, de mãos postas, A áurea bênção dos céus e a proteção dos astros… Francisca Júlia da Silva  nasceu na capital paulistana em 1871 e era conhecida como a “musa impassível”. Além de colaborar como jornalista para diversos veículos da época, publicava poemas e acreditava na necessidade do desenvolvimento da literatura destinada às crianças. João Ribeiro, crítico literário da época, duvidava que seus versos pudessem ser creditados a um...

O Perigo De Uma História Única (excertos), Chimamanda Ngozi Adichie

     Sou de uma família nigeriana convencional, de classe média. Meu pai era professor universitário e minha mãe era administradora. Tínhamos, como era comum, empregados domésticos que moravam em nossa casa e que, em geral, vinham de vilarejos rurais próximos. No ano em que fiz oito anos, um menino novo foi trabalhar lá em casa. O nome dele era Fide. A única coisa que minha mãe nos contou sobre ele foi que sua família era muito pobre. Minha mãe mandava inhame, arroz e nossas roupas velhas para eles. Quando eu não comia todo o meu jantar, ela dizia "Coma tudo! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não têm nada?" E eu sentia uma enorme pena dele.      Certo sábado, fomos ao vilarejo de Fide fazer uma visita. Sua mãe nos mostrou um cesto de palha pintado com uns desenhos lindos que o irmão dele tinha feito. Fiquei espantada. Não havia me ocorrido quw alguém naquela família pudesse fazer   alguma coisa. Eu só tinha ouvido falar sobre como eles e...

O Verão da Senhora Forbes, conto de Gabriel García Márquez

     De tarde, de regresso à casa, encontramos uma enorme serpente-do-mar pregada pelo pescoço no batente da porta, e era negra e fosforescente e parecia um malefício de ciganos, com os olhos ainda vivos e os dentes de serrote nas mandíbulas escancaradas.      Eu andava, na época, com uns nove anos, e senti um terror tão intenso diante daquela aparição de delírio que fiquei sem voz. Mas meu irmão, que era dois anos menor que eu, soltou os tanques de oxigênio, as máscaras e as nadadeiras e saiu fugindo com um grito de espanto. A senhora Forbes ouviu-o da tortuosa escada de pedras que trepava pelos recifes do embarcadouro até a casa e nos alcançou, arquejante e lívida, mas bastou que visse o animal crucificado na porta para compreender a causa do nosso horror. Ela costumava dizer que quando duas crianças estão juntas, ambas são culpadas do que cada uma fizer sozinha, de maneira que repreendeu a nós dois pelos gritos de meu irmão, e continuou recriminando noss...