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Eu Queria Ser Céline Dion, conto de Cícero Belmar


Era cansaço de mim. Eu estava cansado de ser aquilo, um simples Juscelino Pereira da Silva. Da
vidinha chata, os dias iguais se repetindo, sempre na mesma merda. E o pior de tudo, sozinho. Era como se ninguém me visse.
     Iria completar 30 anos daquele jeito? Juntei um dinheirinho e disse: vou fazer uma viagem. Mamãe ainda quis me convencer a não ir. As mães sabem que as viagens são transformadoras.
     Fui para São Paulo, com endereço certo. Tempo suficiente para dar um show em mim. Preenchi os peitos com silicone, a agulha era grossa, mas valia a pena. Ganhei bochechas, as maçãs do rosto ficaram mais altas, os lábios mais sensuais. A pele ardeu feito queimadura, mas é o preço que se paga. Implantei megahair. Meu cabelo era aquela coisinha chupada e veio bater na altura da bunda. Comprei unhas postiças. Vermelho-vivo.
     Bela, me define.
     Se alguma vez fui Juscelino, não me lembro. Virei Céline. É um nome que parece com Celino, de Juscelino. E com Célline, de Céline Dion. Eu estava praticamente igual a minha diva, loira e sorridente.
     Com esse borogodó todo, nem espero alguém dizer: sou um perigo solto no mundo. Bem maquiada, perfumadíssima e linda, voltei. Vesrida de oncinha, um tubinhocolado, bota italiana branca e alta.
     A descida do ônibus, na rodoviária, era o momento ideal para pôr em prática o que aprendi, em São Paulo, no curso de modelo fotografico. Super pantera, mão na cintura, a outra segurando a bolsa. Pé ante pé, desci os degraus do ônibus, dentro do meu tempo.
     Segui o que a técnica das passarelas determina: olhei por três segundos, não mais que três, para o lao esquerdo, tempo suficiente para fotógrafos imaginários - "pense sempre em fotógrafos da Vogue"- fazerem seus cliques.
     Mais três mirando o centro, enquando os da ... Elle ... espoucam seus flashes.
     Finalmente, os três últimos segundinhos para esquerda, olhando para as lentes dos profissionais de ... ah, vai, de Caras... que disputavam meus melhores ângulos.
     Voltei os olhos para o cdntro e segui calçada afora. Conforme aprendi no curso, coluna para cima, ombros para trás, os olhos focados num ponto à frente, cuidado para não tropeçar, um pé à frente do outro, passos largos. Recebi o primeiro cumprimento:
     - Bicha safada!
     Eu acho que o direito de ser esquecido devia estar na Constituição. Juscelino, como diz o poeta, é apenas uma foto na parede.
     Mamãe nem parece ser do interior de Rondônia. É um ser evoluído. Assim que me viu, claro, ficou surpresa, esbugalhou os olhos. Fez o sinal da cruz. Mas viu logo que não tinha mais jeito. Caiu na risada.
     - Que marmota é essa, Juscelino?
     - Se a senhora não gostou do meu look, estou aberta a sugestões.
     Ela me olhou cuidadosamente, e ainda rindo:
     - Não mexa na cor desse cabelo. Está fantástico. Também amei o esmalte.

Em:O Livro das Personagens Esquecidas, Cícero Belmar,Ed. CEPE 2022 págs.121-122

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