Fui morar na livraria Morisaki no início do verão e fiquei até o comecinho da primavera do ano passado.
Instalei-me num quartinho vazio do andar de cima, um espaço úmido e mal iluminado, rodeado pelo permanente cheiro de mofo dos livros velhos. Passav meus dias como que soterrada em livros.
Mas acho que nunca vou esquecer dos dias que passei ali.
É que foi aquele sebo de livros que me mostrou como começar a viver de verdade. Sem os dias que passei ali, minha vida não seria repleta de cores, de sabores, das mais diversas sensações; teria sido insípida, monótona e solitária.
É um lugar que eu nunca esquecerei, um lugar muito importante para mim.
Esta é a livraria Morisaki. As lembrançs dos dias que passei ali vivem, intensas, em minhas retinas, quando fecho os olhos.
***
Tudo começou com uma trovoada repentina.
Foi tudo tão de repente que uma chuva de sapois caindo do céu não teria espantado tanto.
Um belo dia, Hideaki, que eu estava namorando havia quase um ano, se virou paraa mim e, do nada, me disse:
- Eu vou me casar.
Ao ouvir aquilo, a rimeira coisa que me aconteceu foi minha cabeça se encher de pontos de interrogação. Teria sido mais fácil entender se ele tivesse perguntado "Casa comigo?", pensei. Até mesmo um "Estou pensando em casamento"teria sido menos esquisito. Mas aquele "Eu vou me casar"me soou muito estranho. As palavras haviam sido mal escolhidas; afinal, um casamento é um contrato bilateral, resultado de um acordo entre duas pessoas. A frase me pareceu muito descuidada. Também o tom não me agradou: ele disse aquilo com a despreocupação de quem comunica haver encontrado uma moeda de cem ienes na calçada.
Era uma noite de verão - uma sexta-feira em meados de junho estávamos jantando no último andar de um arranha-céu em Shinjuku, um dos bairros do centro de Tóquio, com muitos bares e restaurantes, em um restaurante italiano de que a gente gostava e que tinha uma vista noturna muito bonita dos neons que iluminavam a cidade.
Hideaki era meu senpai, veterano de três anos, na empresa onde trabalhava. Eu me apaixonei por ele no primeiro dia no emprego. Só de estar na presença dele, sentia meu coração se tensionar como uma cama elástica. Pedimos um vinho, pois fazia algum tempo que não saímaos juntos.
Mas daí me acontece isso.
- Como é que é? - perguntei, sem querer.
Cheguei a pensar que tinha ouvido mal.
- Isso mesmo, vou ter que me casar no ano que vem - confirmou ele, como se fosse algo sem importância.
- Mas com quem?
- Com ela.
- Ela quem?
- Com a minha namorada.
Inclinei a cabeça para o lado, perplexa.
- Que namorada?
Com a maior cara de pau, ele disse o nome de uma garota que trabalhava em outro departamento de empresa. Ela fora contratada junto comigo, mas era muito mais graciosa do que eu; era do tipo que só de olhar para ea, já da vontade de abraçar.
Já eu sou muito alta e tenho uma aparência mediana. Não conseguia entender como Hideaki poderia ter se interessado por mim enquanto enquanto namorava uma garota muito mais bonita.
Pedi mais informações. ele disse que já estava namorando com ela havia mais de dois anos e meio - ou seja, há mais tempo que comigo. Eu nunca desconfiei de nada. Na verdade, nunca tinha sequer me ocorrido a possibilidade de que algo semelhante pudesse acontecer. Nós estávamos namorndo em segredo, mas eu tinha pensado que isso era apenas para não criar constrangimento entre colegas da empresa. Mas parece que, na verdade, ele nunca teve a intenção de namorar comigo a sério... estava apenas se divertindo.
Fiquei sem saber se eu é que sou muito burra ou se ele é que é um idiota. Seja como for, as suas respectivas famílias já se conheciam e a dat do noivado já estava marcada para o mês seguinte. Comecei a ficar tonta. Era como se dentro da minha cabeça tivesse um monge budista fazendo soar um enorme sino de bronze.
Ela queria se casar em junho. Mas para este ano já não dá mais tempo... Então, ficou para o ano que vem...
Fiquei ali, abobada, ouvindo aquelas palavras todas saindo da boca dele. Consegui murmurar:
- Ah, é mesmo? Parabéns.
Eu mesma me espantei de ter dito aquilo.
- Valeu. Mas não se preocupe, Takato. Podemos continuar nos vendo, de vez em quando - disse ele, e sorriu.
Ele tinha sempre aquele sorriso desavergonhado, um sorrio de grande esportista.
Se eu tivesse em um dramalhão, esse seria o momento de me levantar e encher a cara de vinho em algum outro lugar. No entanto, eu sempre fui do tipo que não sabe expressar suas emoções. Preciso ficr sozinha, refletir lentamente, até entende o que estou sentindo de verdade. Além do que, o monge da minha cabeça estava tocando o sino alto demais.
Despedi-me dele, meio anestesiada, e voltei para casa sozinha. Passado algum tempo, consegui aos poucos me acalmar. Então, a tristeza aflorou com uma velocidade impressionate. Não era raiva; era puramente tristeza. Um tristeza tão intensa que chegava a ser uma presença como se eu pudesse tocá-la.
Comecei a chorar descontroladamente e, quanto mais eu chorava, menos sinal havia de que fosse um dia parar. Fiquei ali, em colapso no meio do quarto, sem nem ligar a luz. Pensei que, se minhas lágrimas fossem petróleo, eu estaria rica; em seguida, me dei conta de que isso era uma coisa meio estúpida para se pensar; e a constatação de minha estupidez me deu ainda mais vontade de chorar.
"Alguém me ajude, por favor!", pensei, fervorosamente.
Mas não conseguia dizer nada, apenas chorar.
Meus Dias Na Livraria Morisaki, Satoshi Yagisawa. Ed. Bertrand Brasil, 2024, págs. 5-9
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