Olho a tôrre do Empire State Building; dominando a massa de cimento, aço e pedra de Manhattan,
ela faísca como a ponta de uma agulha descomunal. Mas o que tenho agora na mente, é uma outra tôrre para mim mais significativa: o Campanile da Universidade da Califórnia. Lembro-me da véspera de nossa partida de Berkeley... Eu saíra com Rudolf Schevill para um último passeio através do campus. Era uma manhã cinzenta e úmida, e a névoa escondia o cimo das colinas. Conversamos sôbre a guerra e a paz, e Rudolf, que ama a Espanha, expressou a esperança de ver um dia a terra de Cervantes livre de Franco e do falangismo. Relembramos com saudade uma certa noite, no Mills, quando ouvimos juntos o Quarteto N.8, Opus 59, de Beethoven. De súbito, parando e tomando-me pelo braço, Rudolf me disse:
ela faísca como a ponta de uma agulha descomunal. Mas o que tenho agora na mente, é uma outra tôrre para mim mais significativa: o Campanile da Universidade da Califórnia. Lembro-me da véspera de nossa partida de Berkeley... Eu saíra com Rudolf Schevill para um último passeio através do campus. Era uma manhã cinzenta e úmida, e a névoa escondia o cimo das colinas. Conversamos sôbre a guerra e a paz, e Rudolf, que ama a Espanha, expressou a esperança de ver um dia a terra de Cervantes livre de Franco e do falangismo. Relembramos com saudade uma certa noite, no Mills, quando ouvimos juntos o Quarteto N.8, Opus 59, de Beethoven. De súbito, parando e tomando-me pelo braço, Rudolf me disse:
- Eu quisera que vocês pudessem ficar conosco para sempre! Seu rosto rosado, em contraste com a cabeleira completamente branca, era a única nota de côr na manhã fôsca. Rudolf sacudiu lenamente a cabeça e acrescentou:
- Mas eu compreendo que tenham de voltar. No fim das contas o Brasil é a pátria de vocês...
Continuamos a andar e, sentindo mais agudamente que nunca, a futilidade das palavras, eu disse:
- Voltaremos um dia...
Rudolf ficou um momento em silêncio e depois, sem me olhar, murmurou com sua voz mansa e meio rouca:
Talvez... não me enccontrem mais.
Senti um súbita impressão de frio, como se essas palavras de morte tivessem sido sopradas pelo vento cinzento do mar.
E no trem, durante todo o percurso de Berkeley a Nova York, e mesmo através dos vinte e seis dias que permanêncemos nesta cidade tumultuosa, a cena que com mais frequência me vinha à mente, como uma espécie de súmula de tôdas as nossas aventuras sentimentais neste país, foia de Rudolf, com seus cabelos de torçal branco tocados pelo vento, acompanhando na plataforma de estação a marcha do nosso trem, e acenando para nós com os olhos brilhantes de lágrimas. É que naquele momento êle simbolizava tudo quanto os Estados Unidos têm de melhor, de mais nobre e mais humano. Êle era o Amigo. Seu aceno tinha sentido tão maravilhosamente belo, que nem ouso defini-lo.
* * *
O "José Menedez" se afasta cada vez mais de Nova York. Os passageiros se agitam - Adeus, América! acenam para uma barca que passa, cheia de soldados. - Good-bye, boys! - Apontam para a Estátua da Liberdade, agitam lenços, cantam e gritam.
Mas nós quatro continuamos silenciosos. Aposto que, embora Mariana, Clara e Luiz tenham como eu os olhos fitos nos arranha-céus de Manahattan, êles realmente estão vendo as montanhas e vales da Califórnia e, sôbre êsse fundo vago, as faces iluminadas de nossos amigos.
Gaivotas esvoaçam em tôrno do vapor, que avança lentamente para o mar.
A Volta do Gato Preto, Érico Veríssimo, ed. Globo,1961, págs.308-309.
Nota: o livro de onde transcrevi o texto acima é do ano de 1961, razão porque várias palavras estão acentuadas.
Imagem: Universidade de Berkeley no começo do século passado.
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