Pular para o conteúdo principal

Para Alice, Natascha Duarte


     A pessoa que acorda e pula da cama, se olha no espelho e dá bom dia ao dia e uns pulinhos para
agitar o metabolismo meio lento, não é Alice. E ainda assim eu não mudaria nada nela. Fazer de você uma nova figura, não indelével mas solta de você não faz parte dos meus planos. Casada com outros vocês você ficaria indefinível. E é tão fácil definir você - a mulher que eu amo.  

     Não seja outra por ninguém. Você é senão tudo. Em tudo que vejo em você há algo divino. Você se olha pela manhã com medo de se encontrar, é isso? O programa é sair vivendo, querida, sem muito pensar. O programa é concretizar você. Talvez numa canção ou poema. Como no quadro em que a Virgem segura o bebê no colo. Há perigo em viver. Como na morte em que também existe vida. Como naquele arvoredo na encosta do morro, vê? em que galhos secos dão lugar a novos e roliços. 

     Em tudo o que existe há poesia e o ciclo da vida é esse, até terminar. Poetizar até acabar. No medo há lirismo. Olha, eu mesmo, quero me mostrar pra você e tudo que faço faz meus ossos doerem. Eu também tenho medo de mim. Eu tento pensar com o cérebro e nunca penso direito quando preciso de uma ideia. Me tranco. Dá branco. Minha existência não é fácil. É quando eu não preciso de mim que me sou. 

     Eu ía dizendo que vi o cachorrinho triste porque ele matou o amiguinho sem querer. Eu acho que foi assim, Alice: 1- os dois começaram a brincar, o grande e o pequeno; 2- por alguma razão desconcertante o grandão matou o pequenino sem intenção; o grande está sem entender porque o pequenino não se mexe mais; 3- todos os animais do sítio agora estão desolados. Se um deles pudesse contar o que houve talvez dissesse: Foi o calor! Deixou todo mundo louco. Só que bichos não falam e a gente não é o que pensa que é. É menos ainda. É um arrepio inicial e no final, fúria. 

     Vem a raiva de não ter sido tudo o que se queria, vem o medo da morte. Você diz que não consegue distinguir se é feia ou bonita. Que mal tem isso? Mulheres não foram feitas para a beleza exterior, querida. A beleza delas mora dentro das veias. As veias são iguais à nossa mesa de madeira. Veja: cada jantar realizado é um corte na mesa. Cada taça de vinho derramado é uma mancha que marca. Cada vez que nosso coração se parte chovem lágrimas na hora do almoço. A veia se entope do nosso viver, se enche da gente, engrossa com nossas reclamações e escurece de arrependimento. 

     Gente é assim mesmo, contradiz o que sente. Você tenta pensar com o cérebro, como eu, mas ele escorrega pelo rosto e cai no chão? Rapidamente! Não, senhora, não venha me dizer que o seu sofrimento é maior que o meu. Quem sabe se a gente pensar com o pé. 

     Cansei! disse ele, afastando-se da sala. Todo dia a mesma coisa redonda e chata. O amor não é redondo, mulher, é reto como uma linha, e às vezes intenso e separatista como um número. Toma o meu amor, ele é tudo o que tenho para dar. 

     O homem riu com dor e tristeza, e continuou sozinho pelo corredor da casa, falando da Bossa Nova como se a música fosse uma pessoa.


Comentários

  1. Ah, como Natascha escreve bem sobre o Inusitado! Até a trivialidade foge dela mesma e se embrenha em labirintos inescrutáveis! Escreva, Natascha, escreva!! 👏👏👏👏

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Havemos de semear sementes. E algumas se transformarão! Obrigada por me inspirar!

      Excluir

Postar um comentário

comentários ofensivos/ vocabulário de baixo calão/ propagandas não são aprovados.

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.