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Cachorrão Preto, Natascha Duarte

Eu queria ter problemas mais importantes. Mas só falo em jardim e cachorros... É que os animais são tão fofinhos, não é? A Mel. Eu a encontrei na rua e a trouxe pra casa com o intestino saindo pra fora. Tive de fazer uma vaquinha pelo whatsapp pra custear a cirurgia de reposicionamento. Coisinha à toa. Quer dizer, nem tanto pra ela que sofreu, nem para o veterinário que teve de fazer uma segunda cirurgia, porque a mocinha é osso duro de roer e botou o intestino pra fora de novo. Ela ficou num morre não morre, e não morreu. Aí desenvolveu cinomose. Certamente pela baixa resistência depois de 2 cirurgias em poucos dias, como se o sol ficasse à mercê da lua e a lua fosse mais vilã que amante, entendeu? Também não.

A ração deve ser amolecida pro intestino não sair a terceira vez. Só esquentar um pouquinho de água no fogão três vezes ao dia, mexer a ração, servir e esperar ela comer, o que leva um certo tempo já que os dentinhos são meio pequenos e a boca um tanto peculiar. Tiro de letra (Deus está me vendo?).

Mel cresceu muito e hoje é uma rainha (ela, não eu) que late e vigia o quintal com afinco. Um segredo: ela desenterrava os cocôs dos gatos para comer no início, não comentem; mas hoje ela está bem, dá preferência para a ração mesmo. A Melzinha, como a chamamos, é super amiga dos gatos e por mim continuaria assim, uma Mel e dois gatos; só que o Bartolomeu morreu em dezembro passado e eu ainda não consigo falar sobre isso com naturalidade. Acho que nunca vou.

Ficaram apenas Mel e Hanulfo dormindo no sofá da varanda, lado a lado. Quem foi que disse que gato e cachorro não dão certo? Eles podem até ser amigos. Bem, isso não aconteceu exatamente, mas os dois revelaram um jeito de conviver que dava gosto; o espaço de um e do outro preservado, até que meu filho mais velho trouxe da rua um cachorrão preto macho. Pleonasmo nele, é isso o que aquela coisa merece.

Quando o Elvis - o Rei - chegou, o comportamento da Mel mudou, e ela passou a ralhar com o gato, a correr atrás dele com um ódio no olhar... O gato arrepiava de medo. Uma gracinha.

Eu relutei pro cachorro ficar, mas por amor ao meu filho, por amor a Mel que agora tinha companhia e por amor a minha casa, botei o bicho no quintal. Cresça, não se reproduza e vigie, ordenei! E ele cresceu livre, fazendo cocô onde bem entendia e comendo tudo o que via pela frente, incluindo um sapato chique que eu ganhei de presente de Dia das Mães, dois sofás, minhas suculentas, uns tocos de brasa da fogueira (depois que esfria, é claro) e o cocô do Hanulfo, imitando a Mel.

Muito de minha paciência eu perdi naturalmente com os anos. O resto, perdi com o Elvis.

Desde que ele chegou e triplicou de tamanho como um balão assoprado em dia de festa, eu ando meio doida, ou mais doida, depende do ponto de vista. Ele está que nem um bezerro no pasto, e olha que é ainda um filhote. Vocês acham que ele cresce mais?

Eu tava ali na cozinha, agorinha, passando um café e vi um tufo de grama andando pelo chão. Adivinha quem? A criatura mágica! A responsabilidade dele em casa é tão grande que até quando minha maquiagem não fica boa a culpa é do Elvis.

Entendam meu lado, os remédios não são baratos, a ração sobe todo mês. Mais uma semana sem ir ao salão de beleza, mas ninguém vai ao salão de beleza toda semana tirando a Barbie, ora essa.

Há quem diga que o universo confabula a favor de quem coloca os bichinhos acima dos próprios egoístas interesses. Será que acredito? Eu pondero, pondero com muita seriedade sobre quem precisa mais, eu ou eles, quem pode esperar; me pergunto se posso passar sem e continuar viva. E vou lá…. Para a loja de ração. É muito doméstico tudo isso.

Se eu fosse bailarina clássica não teria esses problemas.

Você aguarde até ouvir sobre o jardim. O jardim era um lugar idílico. Aí o jardineiro voltou para a Suíça (sim ele mora lá, é português), deixando meu jardim ao Deus dará. Pra completar ele ainda fica postando aquelas paisagens da Europa. Eu não mereço!

Em dois anos vieram para a entrevista 17 jardineiros diferentes para substituí-lo. Eu fiz questão de contar. Um cobrou 2 mil e novecentos reais pelo serviço e disse que traria gente capacitadíssima. Ele disse ainda que seria bom fazer a manutenção de 15 em 15 dias. Eu falei que ia pensar.

Outro fez mais barato, 1000 reais, e disse que ia demorar uma semana. Não brinca, tudo isso pra cortar grama, eu perguntei, aí ele ficou bravo comigo achando que eu caçoava dele. Tem de ter tato pra lidar com jardineiros. (Se eu fosse médica também precisaria de tato pra lidar com um monte de coisa, isso de tato é uma coisa normal, gente).

Quando outro profissional chegou aqui com um carro melhor que o meu eu tive certeza, estou na profissão errada. Acho que eu seria uma boa jardineira. Gosto de roçadeira, fios, gasolina misturada com óleo diesel.

O jardineiro do carrão esqueceu o orçamento. São profissionais muito ocupados; então, mensagem neles. É mensagem que não acaba.

Oi, lembra de mim, você veio aqui outro dia. Oi, eu de novo, não estou insistindo, não. Você fez o cálculo? Oi, se a gente fechar pode ser sábado agora?

Um astronauta usaria da mesma perseverança, ou isso é falta de personalidade minha, implorando assim? Claro que os astronautas não se preocupam com problemas inferiores, eles têm de se preocupar com coisas importantes senão o foguete cai em cima da nossa cabeça.

Em resumo, bichos e plantas são como pequenas odes à vida e fazem alusão a um encantamento perplexo e contínuo. Entendeu?

Elvis, pára de comer meu carro.

Tummmmmm. Sinal de Natascha (olhos alarmados) chamando ajuda com as férias de julho.

Ninguém atende.


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